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Câmbio: entre a gangorra e a irresponsabilidade
quinta-feira, 22 de agosto de 2013
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A realidade está falando por si só: a nossa moeda estava mesmo artificialmente valorizada e agora ela começa a caminhar para um patamar mais desvalorizado, porém mais realista. Os efeitos sobre preços serão efetivos, pois nossa matriz industrial – e econômica de forma geral – conta com a participação importante de bens e serviços importados.
Um dos maiores engodos que tentam nos passar os defensores do enfoque autenticamente liberal aplicado ao fenômeno econômico é a suposição de que tudo nas relações em uma sociedade capitalista pode ser precificado nos moldes daquilo que eu costumo chamar de “mercado da batatinha”. Ou seja, todos os bens e serviços estariam submetidos à livre ação das forças de oferta e de demanda, fazendo com que os seus respectivos preços sejam determinados em função da dinâmica de equilíbrio de mercado.
Essa hipótese valeria para situações e relações as mais variadas e extremadas, como é o caso da própria força de trabalho e dos serviços públicos. Ora, como o pressuposto básico é a suposta “liberdade” no comportamento dos agentes da demanda e da oferta, não caberia a presença do Estado como organismo regulamentador desse conflito distributivo e dessa contradiç ão entre interesses antagônicos. É conhecida a máxima de que a ação do poder público só vem para atrapalhar a busca de um equilíbrio idealizado, e que sua ausência levaria sempre a uma solução ótima para todos os lados envolvidos. No caso do salário (visto como o “preço” da força de trabalho), a recomendação é acabar com todas as ditas “restrições” que a CLT estabelece na forma rígida da legislação, tais como salário mínimo, 13° salário, FGTS, férias remuneradas, regulamentação de horas extras e por aí vai. Um verdadeiro paraíso liberal, sempre a favor do capital.
No caso dos serviços públicos, o raciocínio fica um pouco mais complexo, mas o argumento se mantém. As tarifas seriam o “verdadeiro preço” dos mercados de telefonia, energia elétrica, transporte coletivo urbano, coleta de lixo, saneamento urbano, serviços aeroportuários e tantos outros. Permanece a suposição irrealista da igualdade de condições das forças de oferta e de demanda, tal como ocorre no mercado da batatinha. Não está contente com a qualidade e/ou tarifa de eletricidade em sua casa? Ora, mude-se para a companhia que opera no poste da calçada do outro lado da rua. Não gostou das condições da empresa de água e esgoto? Transfira sua conta para a concorrente que também opera no teu bairro. Não está feliz com a oferta da companhia do metrô? Faça valer seu poder de demanda e entre no comboio da outra operadora, que deve proporcionar tarifa mais justa.
Taxa de câmbio: um “preço” como os demais
Esse quadro surreal também se aplica, de acordo com essa visão que reinou hegemônica na definição da política econômica nas últimas décadas, ao movimento da política cambial. De acordo com tal interpretação, a taxa de câmbio nada mais seria do que o “preço” das moedas estrangeiras, denominado em moeda nac ional. E vale aqui também a hipótese da liberdade de ação das forças de oferta e demanda. Muita gente querendo comprar dólar, por exemplo, leva a um excesso de demanda pela moeda norte-americana, em relação à oferta aqui dentro. O preço do “bem” sobe no mercado e a taxa de câmbio fica mais alta (desvalorização do nosso real). Num movimento oposto, um excesso de dólares provoca oferta maior do que demanda: o preço do “bem” se reduz e a taxa de câmbio fica mais baixa (valorização de nosso real). Na aparência, tudo muito perfeito.
Ocorre que o mercado de divisas é, obviamente, muito mais complexo do que as operações de compra e venda de laranja pêra na feira livre do bairro. Há uma enorme assimetria entre agentes de oferta e demanda. Não existe hipótese de comparação entre o poder de influenciar a dinâmica de preços entre: i) as empresas e indivíduos que querem comprar ou vender dólares no Brasil; e ii) a força dos poucos e ma stodônticos conglomerados, que atuam em todas as esferas do mercado financeiro. Além disso, trata-se de mais um desses espaços de nossa sociedade, onde as relações entre os agentes econômicos são explicitamente determinadas pela ação do Estado. Ou seja, a política cambial é um dos instrumentos a serem utilizados pelo governo na esfera da economia.
Os elementos que aqui intervêm são do domínio da implementação da política econômica e dependem das condições de desempenho da economia internacional, em geral, e dos países mais ricos, em particular. E então listamos aqui algumas dessas variáveis, tais como o volume acumulado de nossas reservas internacionais, a dimensão da nossa dívida externa, a nossa capacidade de exportação de bens, o volume das nossas importações, o fluxo financeiro do Brasil com o resto do mundo, os preços das principais “commodities” no mercado global, a política monetária dos países mais importantes, as condi ções de liquidez no mercado financeiro internacional, entre tantos outros fatores. Assim, por mais impactante que seja a pressão da classe média brasileira em busca de recursos para suas viagens e compras em Miami, esse tipo de componente é bastante residual como fator explicativo da dinâmica de nossa política cambial.
Evolução da taxa de câmbio: 2003 a 2008
Essas considerações são importantes para que se compreenda melhor o debate atual a respeito das alternativas de que o governo dispõe para lidar com a taxa de câmbio. Uma vez descartada a irresponsabilidade de deixar a busca do ponto de equilíbrio apenas pela “livre” ação das forças de mercado, cabe apontar as condições da evolução dos níveis do “preço” das divisas ao longo dos últimos anos. Como se sabe, um das condições do tripé da política econômica, que vem sendo mantido desde o Plano Real de 19 94, refere-se ao setor externo. A ideia era manter a liberdade do fluxo de capitais internacionais sem restrição nem controle e a livre formação de taxa de câmbio do Brasil com o dólar norte-americano e demais moedas estrangeiras. Em poucas palavras: o governo apenas assiste e não atua.
No entanto, há muita especulação financeira que também interfere na formação dessa taxa. Às vésperas da primeira eleição de Lula, por exemplo, houve uma espiral de desvalorização que não guardava relação alguma com as condições objetivas da economia à época. A taxa de câmbio saiu de um patamar de R$ 2,30 em janeiro de 2002 e chegou a R$ 3,95 em outubro – uma desvalorização de quase 70% em um curto período de tempo. O caráter especulativo desse movimento se confirmou logo em seguida, pois uma vez anunciado o resultado eleitoral, a taxa voltou a R$ 3,52 no início do mandato em janeiro de 2003. E dali para frente conheceu um longo caminho de valorizaçÍ o cambial, chegando a bater R$ 1,56 em agosto de 2008.
Esse processo de valorização do nosso real era fruto da opção de política econômica do novo governo, que defendia a continuidade da essência das diretrizes da época de FHC. A prioridade ao modelo agrário exportador e a política de juros oficiais estratosféricos provocava a vinda de uma enxurrada de capitais especulativos em busca da rentabilidade financeira tupiniquim.
Esse movimento mantinha uma forte pressão permanente de ingresso de divisas. Nesse caso, o que se via a ação de um agente “de peso” pelo lado da oferta de dólares e o resultado era a nossa moeda local se valorizando sem controle algum.
Essa tendência não foi interrompida pela ação do governo, que resistia a todos os reclamos de amplos setores, que apontavam corretamente para os riscos daquela política cambial para nossa economia e nossa sociedade. O real valorizado aprofundava o processo de desind ustrialização e de comprometimento das contas externos pelo aumento exagerado das importações de bens manufaturados, em especial os provenientes da China.
O quadro entre 2008 e os dias de hoje
O quadro sofreu um pequeno ajuste por conta de alterações no cenário internacional. A conformação da crise financeira nos Estados Unidos em 2008 comprometeu a capacidade de investimento de boa parte dos recursos disponíveis pelas praças do financismo pelo mundo afora. Com a redução da pressão de recursos externos também aqui em nossas terras, o câmbio experimenta outro movimento de gangorra: a taxa começa a se desvalorizar por redução do ingresso do capital especulativo e chega a atingir R$ 2,50 em dezembro – uma queda de 60% em apenas 4 meses.
Mas com a continuidade da elevada rentabilidade financeira no Brasil, o fluxo de recursos estrangeiros logo foi retomado, com a c onsequente espiral de valorização cambial. Face ao imobilismo do governo, o real foi sendo valorizado novamente, até atingir R$ 1,53 em julho de 2011. Porém, passados 8 anos após o quadro relativamente tranquilo do setor externo, a partir de então as contas do Balanço de Pagamentos começaram a apresentar déficit preocupante. E a cotação cambial passou a incorporar também esse elemento de incerteza. Por outro lado, a correta decisão da Presidenta Dilma em reduzir a taxa oficial de juros (SELIC) reduziu a atratividade do capital especulativo. Tudo isso combinado levou a taxa de câmbio a conhecer outro movimento de gangorra, iniciando uma tendência de desvalorização. E o real perdeu mais 60% em sua cotação frente ao dólar ao longo dos últimos 2 anos, chegando aos atuais R$ 2,40.
O fato de o governo ter optado pela postura passiva na política cambial provocou enormes prejuízos ao País, em especial nos prejuízos de uma década provocadas por in undação de importados, por desindustrialização e pela quase paralisia na área de ciência, tecnologia e inovação. Perdeu-se, de forma irresponsável, a oportunidade de colocar a taxa de câmbio em níveis que evitassem a valorização artificial, fruto apenas dos movimentos especulativos do capital internacional. A novidade dramática, na conjuntura atual, reside na entrada em cena de uma nova variável, a complicar a tomada de decisões. No caso, trata-se dos efeitos da desvalorização sobre o nível de preços na economia e sua contribuição para acelerar ainda mais a inflação, num quadro em que a meta oficial corre o risco de ser superada.
A realidade obriga o governo a atuar mais
Mas não há como manter esse jogo de faz-de-conta por muito tempo. O governo continua com o discurso de que não há intervenção (apesar das evidentes tentativas de pressão por meio de leilões p raticados pelo BC) e reafirma sua crença no “mercado livre de câmbio”. Os agentes financeiros, por seu turno, continuam a desafiar os limites da coragem do governo, agindo de forma aberta na especulação a respeito de qual seria o novo “teto” ou “piso” aceitável. Apostam, literalmente, contra as posturas indecisas da autoridade econômica. E o governo “queima” as reservas internacionais nessa tentativa de fazer valer a sua palavra e sua vontade face aos lances propostos pelos agentes do financismo.
A realidade está falando por si só: a nossa moeda estava mesmo artificialmente valorizada e agora ela começa a caminhar para um patamar mais desvalorizado, porém mais realista. Os efeitos sobre preços serão efetivos, pois nossa matriz industrial – e econômica de forma geral – conta com a participação importante de bens e serviços importados. E com a desvalorização cambial terão seus preços em real aumentados. Caberá ao governo monitora r cuidadosamente essa onda, de maneira a não permitir que ela se generalize e ameace a estabilidade mais geral da economia. Para tanto pode contar com um amplo conjunto de instrumentos de políticas públicas – mas é essencial que assuma o discurso a respeito da necessidade do governo intervir para promover equilíbrio e estabilidade.
A nova fase: risco de inflação e juros nos EUA
O primeiro grande teste dessa nova fase deverá ser o aumento dos combustíveis, que vem sendo represado há um bom tempo. Mas até mesmo esse reajuste poderá contar com algum tipo de atenuante, por se tratar de impacto sobre uma empresa que pertence ao próprio governo federal, a Petrobrás. O governo tem como alternativa, por exemplo, repassar recursos do Tesouro Nacional à empresa por conta dessa defasagem ou então orientar que parcela do lucro bilionário do grupo seja utilizada para esse fim. Enfim, me didas para evitar um repasse integral aos preços para o consumidor final.
O segundo momento provavelmente terá início em setembro, quando haverá maior clareza a respeito dos rumos da retomada do crescimento da economia norte-americana. Caso o FED (banco central dos EUA) resolva mesmo elevar suas taxas de juros, o diferencial de rentabilidade em relação aos títulos tupiniquins seria reduzido e a maré de capital especulativo diminuiria em nossas praias. Em suma, esse é trajeto rumo a uma taxa de câmbio mais ligada na dinâmica de nossa economia real e menos dependente dos humores especulativos da finança internacional.
A nota a lamentar é que o governo tenha esperado 10 longos anos com essa postura de irresponsabilidade passiva, olhando o cenário econômico com cara de paisagem, como se estivesse a nos comunicar que não tinha nada a ver com aquilo. Afinal, a versão oficial era que “taxa de câmbio é coisa que se define com a liberdade dos agentes de oferta e demanda no espaço sacrossanto e imexível do mercado”. A força da realidade se impôs e a autoridade econômica passa a ser obrigada a reagir como deveria ter feito há muito tempo atrás. Infelizmente, as condições atuais são mais difíceis e as margens de manobra mais exíguas.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.