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Os riscos de ilusão e deslumbramento com a China

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

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Os riscos de ilusão e deslumbramento com a China

Por: Paulo Kliass

Tudo se passa como se houvesse uma mera substituição do antigo parceiro norte-americano pelo novo parceiro chinês. E aqui reside justamente o grande risco dessa postura: um misto de deslumbramento e ilusão com o potencial oferecido pela abertura de oportunidades econômicas e geopolíticas com aquele País.

Paulo Kliass

Um dos aspectos positivos da mudança da política externa brasileira, a partir da posse do primeiro mandato de Lula, tem sido a busca de uma nova postura na relação com os parceiros internacionais. Foi colocada em marcha uma estratégia de superação da opção até então levada a cabo pelos antigos responsáveis pelo Itamaraty. Ou seja, o Brasil passou a buscar uma articulação mais adequada a um mundo que se tornava cada vez mais multipolar, abandonando a inserção anterior muito dependente do alinhamento quase automático à política externa estadunidense.

Assim deu-se o recuo na conduta quase eufórica com a proposta de constituição da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), levada à frente pela diplomacia de Washington e que contava com o apoio entusiasta dos representantes do governo brasileiro até 2002. O ensaio norte-americano fracassou e o Brasil voltou seus esforços para o fortalecimento da política regional, consolidando e ampliando os mecanismos do Mercosul. Por outro lado, a capacidade de liderança brasileira tem sido muito importante para os avanços em um conjunto de articulações voltadas para a unidade latino-americana, para além das fronteiras da porção meridional do nosso continente.

Por outro lado, a nova estratégia da diplomacia brasileira voltou-se para o aprofundamento de alianças diplomáticas e comerciais na linha do eixo chamado “sul-sul”, em complementação às da linha “sul-norte”. Os novos caminhos foram direcionados para os países da África e da Ásia, em uma clara busca de parcerias que se cristalizassem em um contexto de uma ordem internacional pós Guerra Fria e que passou a contar com múltiplos eixos de ação e de interesse nas coordenações de âmbito planetário.

Essa nova configuração da coordenação diplomática correspondia cada vez mais à também nova realidade da divisão internacional do poderio econômico e comercial. Os Estados Unidos deixaram de ser o nosso único parceiro mais importante, tendo sido alcançado e ultrapassado pelas trocas realizadas com os integrantes do Mercosul, da União Européia e com a China, mais recentemente. Dessa forma, ao mundo multipolar juntou-se uma maior pulverização de nossos intercâmbios de produtos e serviços, o que passou a exigir igualmente uma inserção diplomática mais diversificada.

De outra parte, a capacidade brasileira de liderança regional e global foi sendo ampliada em várias esferas da diplomacia. A conversão de nossa dívida externa em endividamento interno conferiu um pouco mais de flexibilidade e, sobretudo, de credibilidade para os nossos representantes governamentais reforçarem o discurso de autonomia na condução da política econômica e de não mais depender das ajudas e interferências do Fundo Monetário Internacional (FMI), como havia ocorrido de forma recorrente ao longo das duas décadas anteriores. A presença brasileira nas instâncias estratégicas das organizações multilaterais também se viu reforçada, apesar de continuar enfrentando as imensas barreiras quando o assunto se volta para a aspiração ao assento permanente no Conselho de Segurança da ONU.

Na onda destas grandes mudanças, ocorre também uma transformação significativa em nossas relações diplomáticas com o novo grande personagem no jogo internacional, a China. À medida que a potência asiática reforça seu poderio econômico, o Brasil começa a reorientar suas atenções para esse importante parceiro. No entanto, ao que tudo parece indicar, nosso País não consegue estabelecer uma postura e uma estratégia que assegurem condições mínimas de defesa de nossos interesses econômicos e comerciais nessa nova relação.

Tudo se passa como se houvesse uma mera substituição do antigo parceiro norte-americano pelo novo parceiro chinês. E aqui reside justamente o grande risco dessa postura: um misto de deslumbramento e ilusão com o potencial oferecido pela abertura de oportunidades econômicas e geopolíticas com aquele País, que vem mantendo um ritmo impressionante de crescimento econômico continuado ao longo das últimas décadas. E, ao que todo indica, o comportamento brasileiro tem se caracterizado por uma espécie de conformismo em ocupar um espaço subalterno na divisão internacional do trabalho, especialmente na relação com a China.

Isso significa aceitar passivamente as imposições e reivindicações dos estrategistas do império oriental, abdicando de uma conduta mais ousada e ativa na defesa de interesses estratégicos do Brasil enquanto nação. Ou seja, é necessário que a ação de nosso governo seja bem mais avançada do que a mera reprodução do discurso daqueles representantes do empresariado aqui instalados, que muito ganham com a continuidade do modelo de reprimarização de nossa economia. A perpetuação do atraso e a imposição de um enorme custo social e econômico à grande maioria de nossa população.

Para os interesses vinculados à economia chinesa é excelente manter o atual estado de coisas, em que o Brasil intervém apenas como fornecedor de matérias primas e consumidor de produtos manufaturados. É reforçada a famosa concepção da especialização segundo a “vocação natural” de cada país. Como temos uma enorme fonte de “commodities” de origem mineral ou agropecuária, cria-se um modelo ancorado na exportação desse tipo de produto para o mercado internacional. Petróleo, minério de ferro, soja, açúcar, entre outros, passam a ser encarados como o fundamento mais adequado para o modelo de nossa inserção internacional. Isso implica um processo de desindustrialização da base manufatureira interna e um maior nível de importação de produtos de maior valor agregado.

No quadro de alianças políticas, os setores vinculados a tal tipo de atividade exportadora se articulam com os representantes estrangeiros que para nós exportam e oferecem os argumentos para convencer nossa população a respeito dos supostos benefícios da manutenção de tal modelo espoliador. E o governo acaba por adotar uma postura de defesa do mesmo. A China, suposta garantidora das nossas divisas de exportação, passa ser encarada como uma espécie de “redentora” de nosso crescimento econômico, em um quadro de recessão generalizada no mundo desenvolvido. E os implementadores de políticas públicas por aqui acabam por ceder muito mais do que o necessário nas negociações com os chineses, de uma forma muito semelhante aos seus antecessores, da maneira como esses se comportavam frente aos negociadores do imperialismo norte-americano no passado.

Os dois exemplos relatados a seguir são bem emblemáticos dessa postura menos rigorosa do Brasil na relação com os chineses e das dificuldades interposta s pelos representantes daquele Estado nas articulações econômicas e comerciais. De um lado, uma forma de deslumbramento tupiniquim com a “performance” alcançada por eles em termos de crescimento econômico, desenvolvimento tecnológico e ampliação da capacidade hegemônica no mundo contemporâneo. Por outro lado, a nossa antiga e recorrente postura que mescla ingenuidade e ilusão na negociação bilateral, onde o saldo final evidencia uma forma pouca efetiva de fazer valer os interesses brasileiros na disputa pesada por espaços estratégicos no comércio internacional.

Em maio de 2004, ocorre uma viagem à China em grande estilo da comitiva brasileira, liderada por Lula. Alguns meses depois, em agosto, o governo daquele país adota uma estratégia bastante dura de negociação a respeito da soja exportada. Vários navios com carregamento do cereal brasileiro são impedidos de desembarcar nos portos chineses, com suspeitas de conterem mercadoria fora do s padrões negociados previamente. Essa postura, que normalmente seria considerada uma afronta ou um elemento de enrijecimento das negociações, é adotada como uma demonstração de que as tratativas com os representantes chineses não seriam tão fáceis quanto pareciam imaginar os brasileiros.

Não obstante as evidências de dificuldades nas relações com aquele país, logo em seguida, em novembro de 2004, o Brasil dá um passo significativo e reconhece a China como uma “economia de mercado”, para efeitos de sua aceitação no âmbito da Organização Mundial de Comércio (OMC). Esse tipo de iniciativa unilateral, sem exigência aparente de contrapartida pelo lado do país beneficiado pela posição brasileira, esgota a possibilidade de avanços nas relações bilaterais, no que se refere à defesa dos interesses nacionais. Com toda a clareza, o balanço das relações parece confirmar que o Brasil termina por oferecer muito mais do que consegue obter em termos de vantagens comerciais.

O outro exemplo envolve uma questão que veio a público ao longo desse ano. Trata-se de uma nova ocorrência na pauta das relações comerciais entre os dois países e, mais uma vez, demonstra a forma como o Estado chinês trata a defesa de seus interesses nacionais, muitas vezes passando por cima de cláusulas ou posturas consideradas agressivas perante o parceiro comercial. No caso específico, todo o processo diplomático e comercial caracterizou-se como um grande equívoco.

No bojo das exportações de minério de ferro para a China, a maior empresa exportadora do produto é a Vale – empresa estatal federal que foi privatizada por preços absurdamente baixos durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Identificando o mercado chinês como um potencial promissor para sua atividade empresarial, a companhia resolveu encomendar uma frota de navios de grande dimensão e capacidade – os chamados supercargueiros. Ao invés de estimular a geração de emprego e renda em nosso país, a opção foi por demandar esse tipo de produto ao país destinatário das cargas de minério – a China. Um absurdo!

Os estaleiros daquele país foram generosamente brindados com tal solicitação e os pedidos estão em vias de serem atendidos num horizonte de tempo próximo. Alguns exemplares começaram a ficar prontos e o primeiro deles saiu carregado de minério do Brasil ainda no mês de maio. No entanto, ao se aproximar do cabo da Boa Esperança a empresa foi notificada de que o maior cargueiro do mundo, o Valemax, estava proibido de atracar em portos chineses. A desculpa era de que ele não estava construído de acordo com as regras previstas pelas autoridades chinesas para os portos daquele país. Isso tudo, apesar de terem sido encomendados para tal missão e terem sido fabricados por estaleiros da própria China.

Enfim, são apenas dois exemplos, mas que ilustram bem a forma como se consolida a nova forma de dominação econômica daquela que se constituirá na nova potência hegemônica no mundo futuro. Cabe ao Brasil redefinir a sua postura de oferecer generosamente muito para receber, a duras penas, muito pouco. Sobretudo, em um modelo de exportação de produtos primários e importação de bens manufaturados. Apenas trocar os elementos da equação da dominação não basta! É necessário estabelecer uma nova postura, mais ofensiva, na defesa dos interesses nacionais. Afinal, a postura de deslumbramento e ilusão na bondade da contraparte tem se revelado ineficaz nas relações diplomáticas e comerciais. Afinal, como afirma de forma provocadora e irônica um experiente profissional da área, “é bem capaz de muita gente bem intencionada começar a sentir até mesmo um pouco de saudades do chamado imperialismo ianque daqui a alguns anos…” Só o tempo dirá.
 
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10

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