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A política e a economia na (des)construção europeia
sexta-feira, 29 de julho de 2011
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A distância física e a falta de sintonia dos órgãos centrais europeus reforçam o sentimento com que passam a ser tratados “aqueles de Bruxelas”, como se aos poucos o sonho da Europa unida fosse desconstruído pelos pesadelos provocados pelas decisões de uma tecnocracia desvinculada das preocupações da maioria da população.
Para quem assiste nos dias de hoje a tudo o que se passa na zona do euro, parece haver uma enorme distância entre os sonhos utópicos da construção da então chamada “Europa dos povos e das nações” e a crise atual de natureza econômica e financeira que parece colocar em xeque tantas décadas de uma difícil trilha em busca de algum tipo de unificação.
É claro que, desde o início de tal movimento no velho continente, havia uma tentativa de se contrapor, do ponto de vista geopolítico e ideológico, ao avanço dos países que experimentavam o caminho do socialismo pelo lado da Europa oriental. Porém, não há como negar tampouco que do lado dos sonhadores de uma unificação europeia estavam também os que lutavam por um espaço de maior solidariedade e de afirmação da paz em um continente tão marcado pelos horrores das guerras sucessivas.
Não por acaso, os primeiros passos mais concretos para essa iniciativ a foram dados logo depois do final da Segunda Guerra Mundial, quando 6 países resolveram estabelecer a Comunidade Econômica do Carvão e do Aço (CECA). Assim, em 1951 Bélgica, Holanda, Luxemburgo, França, Alemanha e Itália constituem essa primeira tentativa de união aduaneira em torno dessas duas mercadorias essenciais ao processo de industrialização que se avizinhava para a reconstrução pós 1945. A base para tal acordo foi justamente uma tentativa anterior dada pelos 3 primeiros países, numa união que ficou conhecida como Benelux.
O processo diplomático e econômico evolui aos poucos e em 1957 esse mesmo grupo de países firma o importante Tratado de Roma, instituindo oficialmente a Comunidade Econômica Européia (CEE). Para além de simples união aduaneira, os signatários avançam mais do que a mera circulação de mercadorias sem pagamento de impostos. O tratado já apontava na direção da livre circulação de pessoas e de servi ços. Os aspectos positivos da construção atraem, mais tarde, a Grã Bretanha, a Dinamarca e a Irlanda, que se associam ao bloco em 1973. No jargão da diplomacia, encerrava-se a fase da “Europa dos 6” e tinha início a etapa da “Europa dos 9”.
Apesar das dificuldades intrínsecas à construção da unidade interna em conjunto tão diverso de identidades nacionais, os dirigentes políticos europeus percebiam a necessidade de ampliarem também o espaço para novos países, tanto em termos de novos mercados como de expansão territorial da união. O período de crescimento econômico dos anos 60/70 parecia favorecer tal tentativa e na década de 80 foram aceitos Grécia (1981) e depois Portugal e Espanha (1982). Era a início da fase da “Europa dos 12”.
A década de 90 é marcada por importantes saltos no caminho da construção do mercado monetário. Em 1991, o Tratado de Maastricht formaliza a transformação da “simples” CEE (comunidade) em um organismo mais complexo, a União Européia (UE). Com isso, começa a ganhar corpo a estratégia de constituição orgânica de uma Europa de natureza quase confederativa e que estaria mais consolidada, tanto do ponto de vista político- institucional quanto da perspectiva econômica e monetária.
Na esteira de tal movimento, em 1993 é aprovada a criação de uma moeda única para esse espaço europeu – o euro. A previsão era de que a entrada em vigor desse novo padrão monetário fosse para o início da década seguinte. Por outro lado, ainda em 1995, a UE ganha três novos membros: Áustria, Finlândia e Suécia. A partir de então, fala-se da “Europa dos 15”.
Na seqüência, 2002 vem a ser um ano especial. É quando tem início a vigência, de forma efetiva, do novo padrão monetário no interior da UE. Em uma experiência absolutamente inédita na história, os países abandonavam suas respectivas moedas nacionais e as substituíam pelo novo euro – uma moeda supranacional. Porém, como estava previsto nos acordos, 3 membros decidem não avançar tão profundamente na unificação. Grã Bretanha, Dinamarca e Suécia optam por uma postura de maior cautela e constituem uma exceção: continuam a ser membros da UE, mas lançam mão do argumento da soberania para não compartilhar a união monetária. Continuam operando em seus próprios espaços nacionais com a libra esterlina e as coroas dinamarquesa e sueca.
Os processos de pedidos de adesão continuam a chegar e o espaço da UE vai sofrer ainda mais dois momentos de ampliação. Em 2005 entram 10 novos países de uma só vez: Chipre, Malta, Polônia, Estônia, Letônia, Lituânia, Hungria, Rep. Tcheca, Eslováquia e Eslovênia. Esse conjunto dura pouco tempo, pois em 2007 entram Bulgária e Romênia, constituindo o quadro atual da “Europa dos 27”.
Uma das singularidades que mais chamam a atenção no caso da unificação européia é a combinação do elemento político-institucional com o econômico. Isso porque, ao contrário do pouco espaço oferecido pela grande imprensa ao movimento, trata-se de um longo processo, em que os países abrem voluntariamente mão de aspectos de soberania nacional para construção de um espaço e de uma institucionalidade supranacionais.
A UE conta hoje com um poder legislativo (Parlamento Europeu), cujos integrantes são eleitos diretamente pelos cidadãos de cada um dos 27 membros, com algum grau de proporcionalidade ao tamanho de suas respectivas populações. Os países mais populosos elegem um máximo de 96 deputados cada um e os menores ficam com um mínimo de 6 representantes cada. A União é dirigida pelo Conselho Europeu que reúne os Chefes de Estado de todos os países membros, com reuniões trimestrais ordinárias.
O Conselho da União Européia representa algo mais próxim o do organismo responsável pelo estabelecimento de políticas públicas e de implementação de matérias aprovadas pelo parlamento. Ele é composto por um representante ministerial de cada governo. O peso de cada país nessa instância é proporcional à sua economia e à sua população. Assim, por exemplo, Alemanha, França, Itália e Grã Bretanha detêm 29 votos cada, enquanto Chipre, Estônia, Letônia, Luxemburgo e Eslovênia têm direito a 4 votos cada um. Dentre as atribuições do Conselho, estão a aprovação do Orçamento da UE, a aprovação da política externa, a definição de uma política econômica comum, entre outros aspectos. Finalmente, temos a famosa Comissão Européia, que é responsável pela condução da UE em seu cotidiano. São 27 “comissários” indicados por seus países e referendados pelo Parlamento Europeu. Cada membro tem um mandato de 5 anos. O poder da Comissão é enorme, pois ela é encarregada de tocar aquilo que se poderia chamar de “governo europeu” em termos de política governamental e administrativa.
Além disso, a UE constituiu organicidade também na área judiciária, com a criação do Tribunal de Justiça. Para sua composição, cada Estado membro indica um Juiz, com mandato de seis anos, renovável. Por outro lado, foi criado um Tribunal de Contas, sem poder de decisão definitivo, mas que se encarrega de acompanhar os processos relativos à lisura na condução da administração pública da UE e também as suspeitas de corrupção.
Um outro órgão que tem chamado bastante a atenção no período recente é o Banco Central Europeu (BCE). Ele foi oficialmente criado já em 1998, como sucessor do então Instituto Monetário Europeu, antes mesmo da entrada oficial em curso do euro nos países da região. O banco é dirigido por uma Diretoria composta por 6 membros indicados pelos governos dos 16 países que adotam o euro como moeda. Cada diretor tem um mandato de 8 anos. Acima da diretoria está o Conselho de Governadores, que reúne os 6 membros da diretoria e mais os representantes dos Bancos Centrais dos países da zona euro. Ao Conselho cabe a definição dos elementos gerais da política monetária e a taxa de juros do BCE.
Como se pode perceber, o processo de construção da UE guarda uma complexidade político-institucional, elemento necessário para assegurar justamente a convivência da pluralidade e da diversidade dos países membros. Com isso, o ritmo da construção européia é o ritmo da política e da diplomacia, a busca do consenso e do convencimento. Porém, correndo paralelamente, foi sendo desenhada também a arquitetura da união econômica e monetária da Europa. E esse processo tem início justamente durante os anos 80 e 90 do século passado, quando imperava absoluto o paradigma neoliberal pelo mundo afora – inclusive no interior de governos socialistas à fr ente do processo de unificação européia, cujo maior simbolismo ficou por conta de François Mitterand, presidente da França por 14 anos – de 1981 a 1995.
E o ritmo da economia acabou por ser muito mais acelerado do que o da política e do institucional. A construção da ordem econômica e financeira da UE, dessa forma, terminou por ser o elemento determinante na configuração final do modelo de união adotado. Ao invés da Europa dos povos e das nações, o que se via cada vez mais claramente era a construção da Europa das grandes empresas e do capital financeiro.
A distância física e a falta de sintonia dos órgãos centrais europeus reforçam o sentimento com que passam a ser tratados “aqueles de Bruxelas”, como se aos poucos o sonho da Europa unida fosse desconstruído pelos pesadelos provocados pelas decisões de uma tecnocracia desvinculada das preocupações da maioria da população e mesmo de seus governos nacionais. A independência do BCE é a perfeita concretização de tal tendência.
Tal descompasso entre a política e a economia vai desembocar num certo desencanto de parcelas crescentes da população de diversos países da região, provocando mesmo um conjunto de manifestações contrárias em plebiscitos convocados para referendar os acordos assinados pelos governos. Mais do que um “não” à Europa em geral, tratava-se de uma posição contrária à forma como aquela união estava sendo constituída, com o eterno chamado ao sacrifício da maioria e os também conhecidos benefícios para poucos. A negativa nas consultas efetuadas na França, Holanda e Irlanda na primeira década do milênio foram os primeiros alertas a respeito das dificuldades colocadas pelo modelo europeu em andamento.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.