Imagem do dia
Enviar link da notícia por e-mail
Artigos
Um país que finge não existir
terça-feira, 3 de novembro de 2009
Artigos
Existe um país onde crianças oferecem seus corpos por R$ 2,00, para comprar comida – ou crack. Segundo a Polícia Federal daquele país, ‘há um ponto vulnerável à exploração sexual infantil a cada 26,7 quilômetros – isso considerando apenas os locais em que a polícia já flagrou ou recebeu denúncia de menores de 18 anos submetidos à prostituição’ (O Estado de S. Paulo). Naquele país ‘87% das garotas vivenciam agressão no namoro’ (O Estado de S. Paulo), ‘Só 10% têm curso superior na faixa de 25 a 64 anos’ (O Globo) e a ‘União gasta quase 15 vezes mais com socorro a tragédias que em prevenção (O Estado de S. Paulo)’.
No mesmíssimo país, um pai leva os policias até o local onde o filho estrangulou até a morte uma amiga de 18 anos. ‘Meu filho começou na droga pelo álcool, no colégio. (…) Vi um bom menino se transformar em assassino’, disse. O ‘Consumo de álcool começa aos 11 anos’ (Jornal da Tarde), no país onde corpos são encontrados dentro de carrinhos de supermercado e cujo presidente admite que ‘possivelmente nem o governo nem o ministro da Saúde possam ainda ter certeza de como tratar o problema das drogas.’Mas aquele país se preocupa com coisas mais importantes. A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou, entre julho e agosto deste ano, 45 projetos capazes de transformar todo esse caos: criaram, entre dezenas de propostas incríveis, o Dia Nacional do Macarrão, o Dia do Calcário Agrícola, o Dia do Tambor de Crioula e o Dia Nacional das Hemoglobinopatias (O Globo). Para cada aprovação, duas horas de debate.
No dia 27 de agosto foi aprovada outra proposta imprescindível para o país: o Dia do Quadrilheiro. A data comemorativa não se trata de uma ironia com os acusados pelo crime de formação de quadrilha, mas uma homenagem aos dançarinos da quadrilha, a dança folclórica que marca as festas juninas em todo o país. Percebendo que o nome ‘dia do quadrilheiro’ poderia causar constrangimentos por conta da alusão ao crime de formação de quadrilha, o deputado Neilton Mulim (PR-RJ), relator do projeto na Comissão de Educação e Cultura, modificou o nome da data para Dia Nacional do Quadrilheiro Junino, com a intenção de ‘evitar ambiguidade’. (Época). Ufa! Ainda bem.
O país inteiro anda mais feliz do que nunca e comemora com toda a pompa: vai sediar a Copa do Mundo e as próximas Olimpíadas! Se em apenas um ano o ‘Número de idosos entre 60 e 64 anos que ainda trabalham sobe 14,2%’ (Agora São Paulo), pois não conseguem viver com o dinheiro do INSS e estão voltando ou permanecendo no trabalho quando poderiam estar aposentados, isso não importa! Se um prefeito é preso e afastado do cargo por ser encontrado com pedras de crack… Que se dane! Se a guerra entre facções rivais do tráfico e as forças de segurança deixam 46 mortos (Veja), se um helicóptero da Polícia Militar é derrubado por traficantes, o que importa é a vitória, são os jogos, as festas, as bebidas, a diversão – o resto não existe.
O país hipócrita, onde 7,5 milhões de pessoas vivem em situação de pobreza extrema (menos de R$ 40,00 per capita por mês; relatório dos objetivos do milênio, IPEA-ONU, 2007), não se preocupa com saúde, segurança e educação. Fecha os olhos para a explosão de violência, o avanço do tráfico de drogas, e tampouco se preocupa com o desperdício: ‘equipamentos de última geração – capazes de detectar armas e drogas em caminhões, ônibus e carros nas estradas -, comprados pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), por cerca de R$ 90 milhões, foram encontrados apodrecendo em um galpão na sede da Superintendência da Polícia Rodoviária Federal ‘(O Globo).
Talvez um dia aquele país passe a se enxergar por inteiro. Pare de festejar quando só tem a se lamentar, decida enfrentar a dura realidade de se olhar no espelho e tomar as devidas providências – para o que realmente importa.
Lourival Figueiredo Melo, é presidente da Federação dos Empregados de Agentes Autônomos do Comércio do Estado de São Paulo