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A fome as finanças: um retrato da desigualdade
quinta-feira, 17 de março de 2011
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Atualmente, a população mundial conta com mais de 6,8 bilhões de pessoas. De acordo com dados da ONU e seu órgão para Agricultura e Alimentação (FAO), 925 milhões desse total passam fome. Trata-se de um contingente equivalente a 5 vezes o total da população brasileira! Além disso, vale registrar que as crianças são as que mais sofrem com tal quadro. Quase um terço das crianças nascidas no chamado Terceiro Mundo, ou seja, 180 milhões, apresentam problemas de desenvolvimento físico e intelectual em razão de problemas de subnutrição nos primeiros 5 anos de vida. O artigo é de Paulo Kliass.
Paulo Kliass
Uma das armadilhas mais perigosas quando se analisam questões macro e
de grande amplitude, como é o caso da fome no mundo, reside na
tendência a considerar tais fenômenos como “fatalidades”, processos
profundos e de longuíssimo prazo, praticamente sem solução à vista.
Aquela estória de que “esse quadro está aí desde que o mundo é mundo”
e por aí vai. Como os avanços não ocorrem no curto prazo e também não
existem instrumentos efetivos de decisão no plano internacional, a
coisa vai sendo empurrada com a barriga e a situação dramática
continua a afetar a vida de boa parte da população do mundo.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos determina em seu Artigo
25, entre outros princípios, que toda pessoa “tem direito a um padrão
de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar,
inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os
serviços sociais indispensáveis” (GN). No entanto, a realidade está
bem distante desses direitos básicos, em especial no que se refere à
questão da fome.
Os números são realmente chocantes e o que mais impressiona é a
passividade das elites políticas por todos os cantos do planeta, que
pouco se movimentam na busca de soluções efetivas. A grosso modo, elas
estão ausentes, seja no plano local, nacional, regional ou global. Na
verdade, o Brasil é um dos poucos exemplos onde políticas públicas
foram implementadas pelo Estado com algum grau de seriedade e
resultados. Nesse quesito, desde o Comunidade Solidária e os
sucessores Bolsa Família e Fome Zero, os programas governamentais
brasileiros têm sido uma referência para os que se preocupam com o
tema pelo mundo afora.
Atualmente, a população mundial conta com mais de 6,8 bilhões de
pessoas. De acordo com dados da ONU e seu órgão para Agricultura e
Alimentação (FAO), 925 milhões desse total passam fome (1). Trata-se
de um contingente equivalente a 5 vezes o total da população
brasileira! Além disso, vale registrar que as crianças são as que mais
sofrem com tal quadro. Quase 1/3 das crianças nascidas no Terceiro
Mundo, ou seja, 180 milhões, apresentam problemas de desenvolvimento
físico e intelectual em razão de problemas de subnutrição nos
primeiros 5 anos de vida. Pior ainda, a fome é responsável por 35% dos
óbitos de crianças nessa faixa etária.
A distribuição regional do mapa da fome reforça ainda mais os aspectos
da profunda desigualdade sócio-econômica em escala internacional. A
absoluta maioria da população que passa fome está concentrada na Ásia
e na África Subsaariana – ali estão 88% desse quase 1 bilhão de
pessoas. A título de comparação, a América Latina e Caribe contêm 6% e
os países desenvolvidos apenas 2% desse total.
Parece estar mais do que comprovado que a sociedade contemporânea tem
plenas condições tecnológicas e econômicas de resolver esse drama.
Assistimos a uma contínua e impressionante elevação nas taxas de
produtividade em geral, inclusive no domínio da agropecuária. Existem
terras agriculturáveis espalhadas pelos vários continentes. A questão,
como sempre, esbarra nos problemas de ordem política e dos interesses
econômicos existentes por trás dos governos, a orientar as políticas
públicas na perspectiva do lucro privado e não no atendimento das
necessidades da maioria da população.
A mercantilização generalizada e a crescente financeirização de todas
as atividades em escala global podem contribuir para a explicação de
tal comportamento. O desenvolvimento das atividades agrícolas e
pecuárias – a base para a alimentação do ser humano – orienta-se como
um setor a mais no extenso menu das opções oferecidas pelo mundo
capitalista. Ao serem tratados apenas como mercadoria, itens como
arroz, trigo, carne, soja, milho, dentre ta ntos outros, perdem a sua
característica essencial e primeira. Qual seja, a de satisfazer uma
das mais essenciais carências dos indivíduos em sociedade –
alimentar-se.
A subordinação de tais necessidades sócias básicas à lógica da geração
de lucro e da acumulação do capital provoca distorções graves, uma vez
que as razões para produzir ou não tal alimento, para investir ou não
na agropecuária em tal região, saem da esfera da política pública para
a lógica do empreendimento privado. Ou, ainda que apoiada por algum
mecanismo estatal (como nos casos de fortes subsídios concedidos nos
países desenvolvidos), a lógica permanece restrita aos interesses
daquele País e não leva em consideração as necessidades da alimentação
da população em escala mundial.
Dessa forma, a dinâmica de preservação dos níveis de miséria e de
desigualdade se mantém tanto nos sistemas políticos injustos e
excludentes nos planos local e naciona l, quanto no modelo desigual da
distribuição da riqueza entre os países. As falsas desculpas de que as
condições para produção agrícola e pecuária, em escala global, são
insuficientes para atender ao crescimento populacional não se
sustentam.
A História e importantes pesquisadores, como o brilhante brasileiro
Josué de Castro (2) , se encarregaram de mostrar que as hipóteses de
Malthus estavam equivocadas. O ritmo de crescimento da população tem
diminuído, a capacidade potencial de produção de alimentos tem
crescido de forma significativa e mesmo assim a fome atinge um enorme
contingente de indivíduos. E o mais grave: segundo os dados da própria
ONU, 80% das pessoas que passam fome vivem em regiões e trabalham em
atividades ligadas ao campo ou à pesca. Ou seja, numa perspectiva
planetária, o problema não se restringe apenas aos movimentos
migratórios do campo para as cidades, que estariam a explicar as
dificuldades com a alimentação.
Por outro lado, a ampliação descontrolada das opções financeiras
introduz uma dificuldade suplementar na dinâmica das atividades
agropecuárias. Aos já existentes e antigos movimentos de especulação
com os estoques de produtos e a manipulação de seus preços nos
mercados nacionais e internacionais, veio somar-se a criação de
títulos financeiros que se autonomizaram em sua dinâmica de
comercialização e negociação. Isso significa dizer que tais papéis
perderam toda e qualquer relação com a atividade produtiva do bem que
leva impresso em seu nome – café, soja, carne bovina, trigo, milho. A
criatividade do mercado financeiro em busca de novas alternativas de
ganhos e movimentação passa a oferecer, assim, promessas de compra ou
venda futura de toneladas de um ou outro produto. É o que o financês
chama de “mercado a termo”, o mercado futuro de “commodities”. Outros
ainda simplesmente operam títulos de cotação de preÍ os de tais bens
primários no horizonte de meses ou mesmo de anos. A opção pelo tipo de
aposta “altista” ou “baixista” fica por conta do freguês…
O movimento especulativo sem controle dos órgãos governamentais ou dos
organismos multilaterais tende a criar situações insustentáveis do
ponto de vista da realidade da economia. Os papéis são lançados,
comprados, vendidos, revendidos, de tal forma que o movimento só se
sustenta nessa ilusão da dinâmica do mercado em movimento. Caso alguém
resolva parar a roda da ciranda financeira por um instante, vem à tona
a crise como a que o mundo conheceu recentemente. Tudo não passava de
um conto de fadas. Os papéis viraram pó. Isso porque os mercados
financeiros no mundo todo giram diariamente quantias de toneladas
virtuais estupidamente superiores à capacidade efetiva dos países
produzirem aquele volume de produtos agropecuários. Pura bolha, toda
recheada de ar!
Outro aspecto agravante relaciona-se ao fato de que as atividades
realizadas no campo cada vez mais se distanciam de sua função
precípua. A lógica de “atender à demanda” provoca distorções
estruturais no sistema, às quais acabamos por nos acostumar, nesse
perigoso comportamento da passividade. Nos Estados Unidos, por
exemplo, estima-se que 40% da área plantada pelo milho destinam-se à
produção de etanol. No caso brasileiro, sabe-se que boa parte da soja
plantada e exportada é destinada à produção de ração animal. Os
programas todos de substituição energética das fontes de combustível
por fontes renováveis plantadas (como o nosso etanol e biodiesel)
carregam em seu interior também essa contradição. São superfícies
consideráveis de terras a produzir bens agrícolas que não se destinam
a resolver o problema crucial da fome.
O ponto a ressaltar é que, desde haja vontade política e um pacto
entre os principais países do planeta, não é muito difícil res olver a
questão da fome nos tempos de hoje. Idéias e propostas não faltam.
Porém, todas elas envolvem o debate de natureza redistributiva da
renda e o reconhecimento da necessidade de uma ação reguladora sobre
os chamados agentes econômicos para buscar a solução. Assim,
observa-se uma enorme resistência por parte dos que detêm posições de
comando e decisão no mundo político e empresarial.
Já comentei aqui a respeito da Taxa Tobin e da “Associação para a
Taxação das Transações Financeiras para Ajuda aos Cidadãos” (ATTAC)
(3). Pois bem, trata-se da idéia do economista James Tobin e
transformada em movimento internacional pela entidade no final da
década de 1990. A proposta é de criar uma espécie de imposto sobre as
operações financeiras internacionais, que seria destinado à
constituição de um fundo internacional para erradicação da fome e da
miséria no mundo. Apenas a título de ilustração, caso fossem atingi
das apenas as operações cambiais e com uma alíquota irrisória de
0,005%, seriam arrecadados por volta de US$ 30 bilhões anualmente. O
mundo financeiro resiste heroicamente. Mas não hesitaram um segundo em
solicitar as centenas de bilhões de dólares destinados aos bancos e às
grandes empresas transnacionais à beira de falência desde 2009 até
hoje.
É também bastante antiga a proposta de constituição de fundos
internacionais voltados a controlar os estoques reguladores de
matérias-primas e produtos agrícolas em escala internacional.
Concebidos para serem operados na forma de uma gestão compartilhada no
interior de organismos multilaterais, tais instrumentos poderiam
servir como anteparo de proteção aos movimentos especulativos nos
mercados de tais produtos, além de permitir ações coordenadas em
momentos de escassez de oferta causados por tragédias naturais.
Ganham força também nos espaços de debate, e mesmo na esfera
diplomátic a, as propostas de maior regulação e fiscalização de
instrumentos financeiros especulativos, em particular na área das
“commodities”. Os bancos, as bolsas de mercadorias as demais
instituições financeiras passariam a ser mais controlados e as
distorções de natureza especulativa, que prejudicassem o atendimento
das necessidades mundiais de produtos alimentícios, seriam coibidas.
Esse tema já está na pauta do G-20.
Deveriam também ser fortalecidos os programas de reforma agrária e de
agricultura familiar em todo o mundo, como forma de aumentar a oferta
de bens alimentícios de utilização efetiva, além de estimular a
fixação das famílias no campo e reduzir o luxo migratório para os
ambientes urbanos. Ao mesmo tempo, poderiam ser implementadas medidas
de estímulo à produção de alimentos, ao invés de utilização de terras
para outros fins.
Enfim, é evidente que a solução da tragédia da fome passa por uma
vontade política e fetiva por parte dos tomadores de decisão no mundo
contemporâneo. E que o universo financeiro teria uma grande
contribuição a fornecer para reduzir esse e outros níveis de
desigualdade atualmente existentes.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental