Tenho ocupado as últimas semanas desta coluna para tratar do tema do desmanche dos direitos trabalhistas, que hoje se materializa especialmente, mas não só, através do texto de conversão da MP 1045, o PLC 17/2021.
Trata-se de um conjunto pernicioso de regras que eliminam a gratuidade para o acesso à Justiça de quem é reconhecidamente pobre, aumentam jornada, impedem a fiscalização e a prevenção de acidentes e doenças no trabalho. Mantêm a possibilidade de suspensão de contrato e de redução de salário e jornada, mesmo que estejamos em outro momento da crise sanitária e com nenhuma restrição à circulação ou funcionamento das atividades empresariais.
Para além disso, cria três hipóteses de contratação sem vínculo de emprego, praticamente sem FGTS, férias e gratificação natalina. Em um deles, chega a prever expressamente a proibição de organização para a construção de norma coletiva. Um extenso pacote de maldades que, após uma leitura completa, causa até espanto.
O que se objetiva com isso?
Desde sempre e em particular em 2017, com a “reforma” trabalhista, sabemos que os motivos explicitados para essas alterações legislativas são falsos.
Nunca houve sequer a pretensão de criar empregos ou melhorar a competitividade, até porque qualquer pessoa com discernimento, inserida em uma realidade capitalista, sabe que a circulação da riqueza e, por consequência, a possibilidade de consumo, é fundamental para que postos de trabalho sejam gerados. Em outras palavras, com jornadas extensas e péssimos salários, não há condições materiais para o consumo e, sem consumo, não há produção.
Em resumo, retirar direitos trabalhistas é boicotar as possibilidades de criar novos empregos ou melhorar a competitividade. Ainda que assim não fosse, os quatro anos que nos separam de 2017, aliados ao recorde de desemprego, de miséria e de empresas que deixaram o país nos últimos tempos exatamente em razão dessa dificuldade de venda de seus produtos, apenas para citar poucos exemplos das consequências trágicas de Lei 13.467, constituem prova da completa falência no atingimento desses (falsos) objetivos.
Pois a MP 1045 repete o discurso falacioso, ao referir tratar-se de um “Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda”, com medidas “para o enfrentamento das consequências da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19) no âmbito das relações de trabalho”. Ora, enfrentar pandemia reduzindo salário, aumentando jornada, impedindo acesso à Justiça e criando fórmulas precárias de contratação simplesmente não é possível.
Ao contrário, as consequências que resultarão desse desmanche são evidentes. Redução de consumo prejudica possibilidades de produção e de contratação. A piora nas condições de vida promove maior adoecimento, que decorre inclusive da impossibilidade de alimentação saudável, por parte de quem terá de sobreviver com remuneração de R$ 250,00 por mês. Tornar a demanda trabalhista algo oneroso, é impedir concretamente que trabalhadoras e trabalhadores procurem a Justiça do Trabalho.
A consequência é, sobretudo, a autorização para e o estímulo ao descumprimento de direitos que historicamente vêm sendo violados. É sempre bom repetir: quem emprega detém autotutela, pode despedir, pagar, não pagar, assediar ou escolher cumprir com seus deveres em uma relação de trabalho. Quem depende do trabalho para sobreviver não pode sequer extinguir um vínculo, sem a intermediação estatal. Há, portanto, um deliberado intuito de afastar da Justiça quem dela efetivamente necessita.
A questão fundamental é como isso é possível
Como conseguimos caminhar tanto, para chegar, de volta, ao mesmo passado escravista, do qual sequer nos livramos completamente. A compreensão dessa racionalidade racista e escravocrata não dá conta de tudo. Afinal, nesse país de poucas famílias bilionárias que se revezam nos diferentes postos de poder já houve tempo em que um certo pudor impedia, por exemplo, que em plena pandemia alguém sugerisse alterar – para prolongar – a jornada dos trabalhadores em minas de subsolo, como o PLC 17 faz.
Em outros tempos, igualmente, haveria noção suficiente de nossas instituições, para perceber que alguns limites de civilidade não devem ser ultrapassados. Um certo pacto, que consistia em manter a dominação, permitindo ao menos que trabalhadores e trabalhadoras vivessem com um mínimo de decência. Esse pacto já foi rompido.
As agressões cotidianas ao povo brasileiro, inclusive por quem ocupa o mais alto cargo de poder, com a cumplicidade escancarada dos demais poderes e da grande mídia, como Jorge Souto Maior mostra tão bem em seu último artigo, revela um novo pacto. E nele, o povo está sendo, talvez definitivamente, sacrificado. E o povo somos nós. Todos que vivemos, produzimos, trabalhamos, convivemos na realidade cotidiana das cidades brasileiras. O PLC está na pauta do dia 1. Veremos, então, como agirá o Senado da República.
Valdete Souto Severo é juíza do trabalho e professora universitária