A Espanha celebrou um acordo social histórico que é fruto de nove meses de negociação tripartite, também denominado de diálogo ou concertação social, enunciando e declarando compromissos pactuados entre o governo espanhol, as entidades sindicais (CCOO e UGT) e empresarias (CEOE e CEPYME), acerca do sistema de relações de trabalho e dos direitos laborais.
Desde 1980, quando a Espanha adotou o Estatuto dos Trabalhadores, o país vem realizando reforma laborais, acumulando mais de 50 iniciativas. As duas mais extensas foram promovidas em 1994 e em 2012, todas elaboradas pelo Poder Executivo e Legislativo e sem a participação das partes interessadas (trabalhadores e empregadores), negando o princípio da autonomia coletiva para que os trabalhadores incidissem diretamente na regulação que afeta sua vida laboral. Nesse período o país produziu altas taxas de desemprego, ampliou os vínculos de trabalho precários e temporários e teve um baixo crescimento da produtividade. As consequências econômicas e sociais foram dramáticas, ampliando as desigualdades e afetando mais gravemente jovens e mulheres.
A catástrofe da pandemia suscitou um processo negocial que percorreu o período de março a dezembro de 2021, uma guinada que recuperou o princípio estruturante de uma democracia fundada na autonomia coletiva das partes para regular sua relação. Essa prática e o fortalecimento desse princípio são elementos essenciais para a revitalização das democracias, pois recolocam o diálogo social tripartite como instituinte político de compromissos, regras e direitos, celebram um modo avançado de participação social e permitem realizar mediações que a arena legislativa não é capaz de cumprir e, portanto, criam espaço e movimento complementares para a vitalidade da vida em sociedade.
O que possibilitou essa guinada? O PSOE recupera e atualiza para a arena política, com a vitória eleitoral de 2019, a agenda de um projeto de desenvolvimento socioambiental, econômico, político e cultural que resgata os fundamentos do trabalho para todos e da partilha do incremento da produtividade mobilizado como estratégia de investimentos públicos e privados, consignado no “Plano de Recuperação, Transformação e Resiliência”. Esse Plano foi apresentado e aprovado pela União Europeia em meados de 2021 e reúne no seu Componente 23, denominado de “Novas políticas públicas para um mercado de trabalho dinâmico, resiliente e inclusivo”, quatro blocos de reformas a serem promovidas no espaço do diálogo social, a saber:
- Simplificação dos contratos: generalização do contrato por tempo indeterminado, causalidade da contratação temporária e regulamentação adequada do contrato de treinamento.
- Estabelecimento de um mecanismo permanente de flexibilidade interna e requalificação de trabalhadores em transição.
- Modernização da negociação coletiva.
- Modernização da contratação e subcontratação de atividades comerciais.
O diálogo social, aberto em março de 2021, enunciou as diretrizes acima que compõem o quadro referencial das relações com a União Europeia para os planos de investimentos em infraestrutura, capacidade produtiva e políticas sociais que estão sendo mobilizados.
Esses projetos partem de um diagnóstico de que:
- há um profundo desequilíbrio do mercado de trabalho espanhol se comparado aos países da União Europeia, que não se justificam e que arrastam uma baixa produtividade, alta rotatividade da mão de obra, precarização e desemprego;
- nessas décadas o sistema relações de trabalho tornou-se frágil, fraco e instável, não favorecendo a uma relação complementar e virtuosa pró emprego entre as convenções coletivas setoriais e os acordos locais e internos às empresas para enfrentar situações cíclicas de crise, trazendo insegurança jurídica para as partes;
- os contratos temporários pressionam os salários e as condições de trabalho, favorecendo a desvalorização salarial que deteriora o padrão de vida e enfraquece a demanda interna do país e, portanto, a capacidade de crescimento econômico;
- um caso clássico de incremento da produtividade espúria que busca competitividade através da redução de salários e não da inovação, da educação e do investimento.
Para tratar do enfrentamento da crise sanitária na Espanha, governo, trabalhadores e empregadores criam um espaço de diálogo tripartite a partir do qual celebram acordos para a implementação de políticas e programas para proteger os empregos e a renda dos trabalhadores. As primeiras reformas implementadas trataram do trabalho remoto e teletrabalho (setembro de 2020), da igualdade salarial entre mulheres e homens (outubro de 20220), de medidas para garantir os direitos trabalhistas das pessoas envolvidas na distribuição no campo das plataformas digitais (maio de 2021), de um novo aumento do salário mínimo, de políticas ativas para a geração de emprego, entre outras importantes medidas.
Esse acordo espanhol histórico fortalece a negociação coletiva, valoriza os sindicatos e da prevalência dos contratos coletivos setoriais sobre os acordos por empresa e amplia sua eficácia para todos os trabalhadores e terceirizados; contratos de trabalho com prazo indeterminado desincentivam os de curto prazo; combate a rotatividade e a informalidade; políticas de proteção dos empregos; formação profissional como parte do contrato de trabalho e direito do trabalhador; medidas para inibir demissões, inclusive no setor público.
O fundamento se assenta na ideia de que diálogos e acordos sociais devem buscar regras e políticas publicas mais justas. Nessa perspectiva, o processo de concertação continua, com revisões previstas para os próximos dois anos e com novas iniciativas que poderão ser suscitadas pelos trabalhadores e empregadores. Trata-se de uma mudança de mentalidade no tempo presente, que pode consolidar outras possibilidades de futuro, orientadas pela justiça, igualdade, solidariedade e cooperação.
Clemente Ganz Lúcio
sociólogo, consultor e professor, assessor das Centrais Sindicais