É inegável a relevância do debate sobre a jornada de trabalho para a organização da vida social uma vez que a distribuição do tempo é um dos problemas centrais de todas as sociedades. Os tempos são recorrentemente transformados pelas mudanças econômicas, sociais e culturais, mas tais mudanças não se processam unicamente na esfera produtiva com o controle da extensão, distribuição e intensidade da jornada relativa ao trabalho remunerado, mas na forma como o trabalho reprodutivo está organizado e como mulheres e homens distribuem o seu tempo entre essas duas dimensões de forma articulada entre si. Apesar da grande capacidade do capitalismo em transformar as condições de trabalho, ele não foi capaz de eliminar a necessidade de um tempo necessário para a reprodução social de mulheres e homens.
A primeira norma internacional que trata da jornada de trabalho é de 1919, mas foi em 1935 que a OIT recomendou a adoção da jornada de 40 horas semanais como um padrão social a ser alcançado, naquele momento o mundo vivia as adversidades da segunda guerra mundial e a taxa de desemprego estava em alta, passados mais de 75 anos apenas 15 países a ratificaram. Atualmente se discute a semana de quatro dias em várias partes do mundo, contudo, na maioria dos países da América Latina os dados mostram que as horas trabalhadas em atividades remuneradas sofreram pouco ou nenhuma alteração nas últimas décadas e as mudanças tem avançado em outra direção: jornadas mais diversificadas, descentralizadas e individualizadas.
A característica comum a estas novas modalidades que se intensificam na era neoliberal é a corrosão de formas de emprego institucionalizadas próprias da organização da produção industrial em que se distinguia claramente local de trabalho e casa, tempo de trabalho e tempo livre, trabalho remunerado e trabalho não remunerado. A erosão de tais fronteiras é um processo fundamentalmente facilitado pelas novas tecnologias de informação e comunicação e pelas políticas neoliberais que colocam a discussão sobre o tempo social em um outro patamar uma vez que a disputa sobre o uso do tempo é um dos principais embates da classe trabalhadora neste último século.
Apesar dos avanços tecnológicos uma parte expressiva da classe trabalhadora mundial ainda cumpre jornadas superiores a 48 horas semanais, enquanto outra proporção se encontra em condições de subemprego, trata-se de jornadas insuficientes que não assegura sequer a própria sobrevivência.
Por outro lado, o declino do trabalho na indústria e a expansão da participação relativa da ocupação no setor de serviços segue como uma tendência desde primeira revolução industrial e dadas as características deste segmento que combina diferentes arranjos sobre o uso do tempo, o debate mais geral na sociedade sobre a redução da jornada de trabalho também se complexifica. Em vários países da América Latina a redução da jornada de trabalho ganhou centralidade na agenda política e sindical nos anos de 1980 sendo progressivamente esvaziado pela despadronização da jornada de trabalho em vários setores econômicos e pela ampliação de contratações atípicas como pessoas jurídicas, autônomos, trabalho por conta própria, dentre outras.
Além disso, os desdobramentos da revolução tecnológica têm potencial para substituir uma parcela significativa da força de trabalho, conforme indicam estudos da OIT. Embora a discussão sobre possibilidades de os empregos serem automatizados esteja mais presente nos países desenvolvidos, os seus efeitos evidentemente podem alcançar o conjunto das economias uma vez que as cadeias globais de valor estão em mãos de poucas empresas.
Evidentemente que são considerados vários aspectos na definição ou não pela automação, trata-se de considerações de caráter técnico, mas também econômico, como os custos da força de trabalho, investimentos em tecnologia e países com custos de mão de obra baixos a possibilidade de transferir processos manuais para robôs é reduzida.
A redução da jornada de trabalho nos parece a resposta mais adequada diante de uma sociedade que tende a absorver cada vez menos trabalho vivo. As tecnologias sempre eliminaram empregos absorvidos pelos novos investimentos, atualmente as novas fronteiras de investimentos já não mobilizam a capacidade produtiva na intensidade em que precisa gerar trabalho, além de dissolver padrões de trabalho tradicionalmente associados as ocupações. Reduzir o tempo de trabalho necessário é a única forma de enfrentar os problemas estruturais do trabalho no capitalismo.
Quando se analisa a potencialidade do debate sobre a redução da jornada de trabalho é fundamental que se considere os seguintes aspectos: as tendências de flexibilização estão presentes desde os anos de 1970 e com mais vigor em nossos países a partir dos anos de 1980 e 1990 e são respostas ao processo cada vez mais intenso de integração de nossas economias a uma lógica de inserção internacional e construção de um determinado padrão de relações de trabalho baseado na competitividade espúria em que busca obter vantagens comparativas com base na redução dos custos do trabalho, na flexibilização e na retirada de direitos. A informalidade no Brasil responde por mais de 50% das ocupações.
O segundo aspecto é apresentar uma saída para o problema estrutural de falta de trabalho. Dadas as inovações tecnológicas poupadoras de trabalho, o simples crescimento econômico – apesar de ser uma condição necessária – não é suficiente para gerar postos de trabalhos decentes a toda força de trabalho disponível. É crucial garantir trabalho a todas as pessoas e que estes trabalhos sejam reconhecidos como relevantes socialmente para o coletivo da comunidade e não fiquem restritos ao circuito de acumulação capitalista.
Portanto, é fundamental recolocar a centralidade da redução da jornada de trabalho como forma de gerar e distribuir empregos para todas as pessoas. Os avanços tecnológicos permitem tecnicamente reduzir a jornada de trabalho e, como sempre ocorreu na história do capitalismo, a questão é política e ideológica. A defesa da redução da jornada poderia estar associada ao debate mais geral sobre a distribuição do tempo entre o trabalho e não-trabalho e na própria distribuição das responsabilidades familiares por todos os seus membros.
Portanto, trata-se de um debate político e deve ser abordado como uma estratégia para resolver os graves problemas de emprego, uma resposta política ao problema da pobreza, da desigualdade e da precariedade que afeta a maioria da classe trabalhadora. Ampliar o tempo livre para que as pessoas podem ter uma vida digna e com qualidade.
Marilane Oliveira Teixeira, economista, doutora em desenvolvimento econômico e social, pesquisadora e assessora sindical