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Natal chinês e taxa de câmbio
segunda-feira, 2 de janeiro de 2012
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Paulo Kliass
Natal e fetichismo
O período de Natal nos oferece uma oportunidade ímpar para compreender alguns aspectos essenciais do próprio sistema capitalista. Durante algumas semanas, um pouco antes e um pouco depois da passagem do ano, a complexa engrenagem da economia consegue movimentar recursos como em nenhum momento durante todo o resto do tempo.
Desde o processo da produção, passando pelas etapas associadas à distribuição, até chegar ao momento final do consumo, o período natalino revela com toda a sua força alguns dos aspectos daquilo que Marx chamava de fetichismo da mercadoria. Em plenos trópicos, sob um sol escaldante de um verão que chega a beirar os 400 C, as pessoas saem aos milhões pelos centros comerciais em busca das promessas da satisfação e da felicidade. Elas conseguem se iludir com as associações que lhe são impostas pela máquina de publicidade. A sedução para o consumo é comandada por um ideário absolutamente distante e irracional para a nossa tradição social, nossas raízes culturais. Trata-se de um velhinho barbudo, dirigindo um trenó puxado por renas, que entra chaminé abaixo das nossas casas, durante uma noite de neve. Uma loucura! E o que mais impressiona é que o modelo parece funcionar.
A chamada para as compras é estimulada também pelo sentimento de bondade e solidariedade que se busca criar no período natalino, com as bases fornecidas também pelo espírito cristão. Ser bondoso é comprar um presente novo para alguém. Demonstrar sua face solidária é adquirir uma mercadoria para outrem. No fundo, quase tudo termina por se consolidar numa mercantilização das relações sociais e pessoais. Vale sublinhar que todo esse processo é operado com todo o fundamento da religiosidade, que atua como argumento a reforçar as engrenagens dessa poderosa máquina de produção e reprodução do capital.
No entanto, a particularidade desses últimos anos tem sido a participação crescente dos produtos chineses na cesta de consumo da grande maioria dos brasileiros. Essa realidade se apresenta para o conjunto das faixas de renda, mas é especialmente relevante para os setores das chamadas novas classes médias. São os grupos sociais que obtiveram uma elevação no nível de seu rendimento familiar real ao longo dessa virada do milênio e que passaram a contar com a possibilidade de acesso a produtos oferecidos a preços significativamente reduzidos.
Invasão de chineses
E assim chegamos a uma das mais profundas contradições que a sociedade brasileira atravessa no momento. O modelo que propiciou essa melhoria das condições de vida de parcela da nossa população não é sustentável no médio e no longo prazos. O acesso a esse tipo de consumo de bens de baixa qualidade e vida útil reduzida é a base do fetichismo da mercadoria nesse mundo globalizado. O agravante é que se trata de bens produzidos fora de nossas fronteiras, em especial na China. Basta percorrer lojas, mercados e outros locais de consumo para percebermos que os hábitos anteriores estão sendo substituídos por novos padrões determinados fora daquilo que poderíamos qualificar, de uma forma um tanto genérica, como nossa matriz social e cultural.
Além da elevada obsolescência de tais produtos e dos inquestionáveis impactos negativos em termos sociais e ambientais associados à sua produção e comercialização, o fato é que seu consumo só beneficia a estrutura econômica enraizada em suas origens. O consumismo desenfreado a que assistimos por aqui praticamente só gera emprego e só eleva a renda na China distante.
Se não fez esse exercício ainda, olhe ao seu redor, procure as etiquetas nos produtos com os quais tem algum contato em seu cotidiano. Confirme você mesmo com seus próprios olhos. A presença chinesa começa a ficar insuportável. Aquele eletrodoméstico com tantas funções – a maioria delas de utilidade duvidosa – que se revela sem a garantia prometida no momento da primeira necessidade? Um celular maneiro, com propriedades de última geração que ninguém na classe ainda possui? Um computador “tablet” maravilhoso, com a tela “touch screen” que o colega trouxe de Miami? Um carro novo e barato? Uma moto para quem andava apenas de ônibus até o ano anterior e que imagina irá conseguir gastar talvez menos com gasolina e prestação do consórcio do que com as passagens do transporte coletivo? O sapato de plástico meio esquisito tentando imitar o couro? As roupas mais baratas do que as produzidas pelos tradicionais pólos de confecção nacional espalhados pelo País afora? Os detalhes e acabamento e os equipamentos para o interior da residência construída ou reformada no último ano? Tudo “made in China”. [1]
Do ponto de vista da organização da sociedade e de sua estrutura econômica, a verdade é que o Brasil não está se beneficiando da melhoria do nível de renda real de sua população. Uma das principais razões para tal fenômeno indesejado é a nossa taxa de câmbio sobrevalorizada. Por meio desse indicador econômico absolutamente distorcido e irrealista, aquilo que o “economês” chama de matriz de preços relativos apresenta valores que parecem pertencer ao mundo da fantasia.
Os preços dos produtos importados chegam aqui com valores artificialmente mais reduzidos. A sensação de elevação do poder de compra dos brasileiros no exterior torna-se particularmente sedutora, com todos os recordes de viagens ao exterior e compras lá fora sendo batidos ano após ano. Apenas para os que se destinam aos Estados Unidos, e que retornam com as malas entulhadas de bugigangas, o número de pedidos de vistos junto às autoridades consulares daquele país subiu mais de 40% entre 2010 e 2011. Ou seja, nem mesmo os humilhantes e cansativos procedimentos de natureza burocrático-administrativo-diplomática parecem funcionar como desestímulo às viagens para a terra de Disney e Obama.
Mais importações e dificuldades nas exportações
A contrapartida desse movimento é o encarecimento dos produtos que nossa economia pretende exportar, em especial os produtos manufaturados. Com o real sobrevalorizado, os bens industrializados aqui não conseguem atingir preços internacionais – com referência em US$ – que sejam competitivos com os demais países. Ora, com a demanda doméstica sendo dominada pelos produtos importados, especialmente da China, e a demanda externa não conseguindo ser realizada também por um problema de câmbio irreal, a tendência tem sido o avanço da desindustrialização em nosso território. As empresas preferem não mais abrir novas unidades ou deslocam as existentes. O Brasil – todo orgulhoso – oferece generosamente ao resto do mundo as soluções para que os demais países saiam sem muitos prejuízos com a crise generalizada. Asseguramos emprego e renda lá fora!
Estamos fechando o ano com o dólar norte-americano cotado a R$ 1,85, ao passo que tal índice permaneceu na média de R$ 1,60 ao longo dos nove primeiros meses do ano. Uma das conseqüências econômicas de tal ilusão reside, como já afirmado acima, no barateamento artificial dos bens e serviços oferecidos pelo resto do mundo. Portanto, é fundamental que o governo passe a atuar de forma incisiva nessa dimensão da política econômica. Não podemos mais aceitar passivamente esse quadro dramático, em nome de uma enganosa conduta de respeito ao postulado do suposto equilíbrio das livres forças de mercado. O mercado de câmbio não é o mercado da batatinha!
Desvalorizar a taxa de câmbio
Apesar de não ser possível determinar de forma “científica” o valor exato da taxa de câmbio de equilíbrio, o fato é que boa parte dos especialistas e estudiosos – não dominados pelos interesses do capital financeiro – apontam para uma taxa mais adequada como estando situada em um intervalo entre R$2,50 e R$ 3,00. Mais do que nunca, trata-se de recuperar com urgência urgentíssima o perverso atraso da última década. Foi um período em que os governos sentaram na falsa comodidade oferecida pelos sucessivos recordes nos valores totais de nossas exportações. O ingresso nesse mundo de fantasia só ocorria por conta dos preços internacionais também altos das “commodities”, como petróleo, minério de ferro, soja, açúcar, boi, frango, suco de laranja e por aí vai. Ou seja, uma acomodação perversa na continuidade da reprimarização de nossa economia, ao ponto dos usineiros serem elevados ao panteão dos “heróis nacionais” na infeliz declaração do ex Presidente Lula em 2007. [2]
Como chegamos a esse atraso na calibragem da taxa de câmbio, o governo terá que lidar na sintonia fina com os efeitos de alta de preços, pois o País foi se acostumando com essa matriz de preços relativos de bens importados. Com a mudança necessária na taxa de câmbio, haverá uma elevação inicial da inflação, pois os preços em reais das mercadorias importadas ficarão mais altos. Paciência! É o preço a pagar pela passividade irresponsável que imperou até o momento no trato da questão cambial. Mas isso não significa que haverá uma retomada do processo inflacionário, como no passado. Apenas aquilo que o “economês” chama de choque de ajuste de preços: do inglês “once and for all” para transmitir a imagem de uma elevação de preços: uma subida única definida no tempo.
Para dar início a esse importante ajuste, temos a sorte de que a própria crise financeira internacional seja, por mais uma dessas ironias proporcionadas pela História, nossa aliada. Basta o governo se convencer da necessidade de reduzir de forma efetiva a taxa de juros SELIC (sem se esquecer, é claro, das demais medidas necessárias para abaixar os juros na ponta para o consumidor n balcão dos bancos). Com a redução do ganho financeiro fácil, o capital especulativo internacional deverá procurar outras praças e a redução da pressão sobre o mercado de divisas no Brasil fará com que nossa moeda – o real – deixe de ficar tão artificialmente valorizado. A taxa de câmbio deverá mudar de patamar. Assim, ganha-se dos dois lados. Os juros ficam mais baixos. A taxa de câmbio retorna a níveis menos ilusórios.
E aí, sim, talvez então caiba para dezembro de 2012 o verdadeiro conteúdo dos desejos de Feliz Natal e Bom Ano Novo. Menos chinês e mais brasileiro.
NOTAS
[1] Fico aqui apenas nos bens de consumo básicos, sem mencionar os equipamentos mais pesados. È o caso, por exemplo, do super cargueiro encomendado pela Vale aos estaleiros chineses e que está de volta à costa com o casco rachado e impossibilitado de transportar o minério de ferro exportado.
[2] http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u90477.shtml
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.