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Nós e o Haiti: lições e reflexões

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

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Nós e o Haiti: lições e reflexões

Por: Paulo Kliass

Se comemoramos a conquista do 6ª posição dos PIBs nacionais e se nos candidatamos a comandar a força internacional de ocupação do Haiti, o mínimo que devemos oferecer aos cidadãos daquele país é um comportamento mais humanitário e de solidariedade no quesito imigração.

Paulo Kliass

‘Pense no Haiti, reze pelo Haiti.
O Haiti é aqui. O Haiti não é aqui.’
(Caetano Veloso)

No início, as vítimas éramos nós
Até pouco tempo atrás, tudo parecia mais fácil. Problemas com a migração de brasileiros para os Estados Unidos? Dificuldades verificadas com os conterrâneos que tentavam a vida como decasséguis no Japão? Denúncias sobre os nossos compatriotas que resolviam imigrar para algum dos países do espaço europeu? Os casos eram muitos e o sentimento de injustiça que nos acometia era enorme. Mas a explicação era simples: culpa dos países ricos.

Tudo não passava da intolerância dos governos daquelas terras para com os brasileiros e demais povos do Terceiro Mundo, que apenas tentavam escapar da miséria, pobreza, autoritarismo e desemprego em seus locais de origem. Dificuldades para ingressar nos novos espaços, impossibilidade de obtenção de vistos, necessidade de se submeter a esquemas ilegais para ultrapassar as fronteiras. Esses governos eram a expressão do racismo e da xenofobia, enxergando no estrangeiro a causa das respectivas crises e desemprego. Um verdadeiro absurdo a ser denunciado pelo mundo afora!

Era o caso dos Estados Unidos, com suas regras e procedimentos bastante rígidos para ingresso em seu território, além da tentativa de construir um muro na fronteira mexicana, mesmo depois da criação da área de livre comércio da América do Norte – NAFTA. Afinal, ali são mais de 3000 km de fronteira, boa parte sob a forma de deserto. Apesar do controle policial intensivo, o esquema de “coyotes” atravessando de madrugada nunca deixou de existir.

Nos países europeus, a tema da imigração tem sido cada vez mais colocado na pauta política ao longo das últimas décadas. E as respostas oferecidas pelos diferentes governos aparecem sob todas as mesmas formas: endurecimento na exigência de vistos, aumento do controle nas fronteiras, estabelecimento de cotas, deportação, reenvio às fronteiras ou aos países de origem. Enfim, uma enorme intolerância para com o estrangeiro, o imigrante.

Novos tempos e Brasil na berlinda
Pois é, e agora, José? Na verdade, nada como um dia após o outro. O fato é que viramos vidraça. De tempos para cá o Brasil passou a contar em seu próprio espaço com os quadros de dificuldades que sempre denunciamos lá fora. Afinal, a entrada em nosso território de cidadãos paraguaios, bolivianos, coreanos, chineses, entre outros, não é novidade para ninguém. A grande maioria deles, inclusive, vivendo em condições sub-humanas, labutando sob regime de trabalho degradante (quando não análogo à escravidão), enfim imigrantes ilegais que buscam o Brasil como alternativa de uma vida melhor. E a postura de nossas autoridades tem sido a de fingir ignorância do fenômeno, tolerar o absurdo e continuar tocando a coisa com a barriga.

Ao longo das últimas semanas, porém, começou a ganhar espaço nos meios de comunicação um conjunto de informações a respeito de um novo fluxo migratório, com origem no Haiti. Em razão de nossa presença como responsável pela força de ocupação militar da ONU, a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti – MINUSTAH, talvez dessa feita o governo brasileiro tenha sido constrangido a dar um tratamento mais efetivo ao fato.

Até o momento, as decisões oficiais têm se revelado “impressionantes” e “surpreendentes” – para dizer o mínimo. Sob o argumento de que há um descontrole na vinda de imigrantes ilegais provenientes daquele país da América Central, o governo decidiu “regularizar” essa entrada. E os procedimentos em nada ficam a dever às propostas que as correntes políticas mais conservadoras sempre sugeriram e praticaram na Europa, por exemplo, para tratar a questão dos estrangeiros. Para tanto, ficou estabelecida uma cota anual máxima de imigrantes procedentes do Haiti. O limite é de 1200 por ano, 100 por mês. Uma loucura! Não há o menor sentido em estabelecer esse quantitativo sem pé nem cabeça. A não ser que o objetivo seja realmente impedir os haitianos de virem para cá. Em tese, os pedidos devem ser feitos junto à Embaixada brasileira na capital, Porto Príncipe. Ora, todo mundo sabe das dificuldades para se conseguir cumprir com esse ritual junto à administração pública diplomática, principalmente para as camadas da população mais afetadas pela crise e que pretendem justamente sair num ato de desesperança.

Por aqui, a Polícia Federal já está atuando de forma a impedir o ingresso de novos imigrantes pelas fronteiras amazônicas e o governo do Acre estaria proibido de oferecer até mesmo ajuda humanitária aos haitianos que tentem entrar em nosso território [1]. A política oficial é de devolver o cidadão à fronteira e, no limite, deportá-lo. O único aspecto positivo das decisões foi o reconhecimento “de fato” dos que já estejam em nosso território e que devem receber também, a exemplo dos novos pretendentes, um visto de permanência.

Cotas são injustas e não resolvem
Além disso, é importante registrar que tal conduta do governo não vai resolver o problema da imigração ilegal, assim como nem mesmo o forte controle policial na fronteira dos Estados Unidos com o México impediu o fluxo clandestino por lá. Há um elemento determinante, de natureza estrutural nesse processo de rotas migratórias. Trata-se da absoluta falta de perspectivas no território de onde se sai e algum grau de atratividade do local para onde se dirige. São amplamente conhecidas as profundas dificuldades por que passa o Haiti – sejam as históricas condições de miséria e pobreza da maioria de sua população, seja o agravamento de tal realidade pelo triste terremoto ocorrido há 2 anos atrás, com o registro oficial de mais de 200 mil mortes. Já o Brasil passou a entrar no imaginário da população daquele país por sua participação como coordenador da MINUSTAH e pelos resultados mais interessantes de sua economia, quando comparado aos países do hemisfério norte. Enfim, uma parte do Brasil foi para o Haiti. Agora, estamos recebendo por aqui uma pouco também do Haiti.

Nossa fronteira seca se estende por mais de 17 mil km e temos contato físico com 10 países aqui na América do Sul. Como se fala no jargão dos especialistas, ela é uma verdadeira “peneira”. Que o digam as volumosas quantidades de tráfico ilegal de armas e drogas que passam há muito tempo, quase sem controle, sob todas as formas de transporte: aéreo, fluvial e terrestre. Assim, enquanto for considerado “razoável” por setores interessados correr o risco de contratar a viagem desde o Haiti até um país nosso vizinho, utilizar os serviços da versão sul-americana do “coyote” e penetrar em território brasileiro, o fluxo deverá continuar. As cotas não serão o impedimento. Como ocorreu e ainda ocorre por aqui e em todos os continentes.

Necessidade de uma política séria de imigração
Outro ponto que chama a atenção é o fato da formação social brasileira ter na imigração um elemento forte de sua própria constituição. O Brasil que conhecemos hoje é fruto de várias correntes migratórias ao longo de sua história, com importantes fluxos ao longo do último século – italianos, japoneses, cidadãos originários de regiões e países da Europa central, imigrantes do Oriente Médio, entre tantos outros. Assim, o tratamento oficial conferido ao imigrante, ao estrangeiro, deveria refletir essa tendência à incorporação e à aceitação do “outro”.

O caminho escolhido, no entanto, foi o oposto: o estabelecimento de cotas e o endurecimento policial e repressivo, que refletem uma postura de intolerância. E que pode facilmente derrapar e acabar reforçando o potencial político de natureza reacionária, como elemento de reforço do racismo e do chauvinismo. E o mais contraditório é que a marca do imigrante está, inclusive, muito presente até mesmo nos integrantes do primeiro escalão do governo. Senão, vejamos apenas alguns dos sobrenomes que ainda estão ou já passaram pelo governo da Presidenta Roussef: Salvatti, Mantega, Saito, Hoffmann, Haddad, Mercadante, Palocci, Tombini, Hage, Rossi, Pochmann, Adams, Campello, Florence, Lupi, Arbex, entre outros.

Não se pretende aqui defender a tese de que o Brasil possa resolver sozinho os problemas de pobreza e miséria de todo o planeta, abrindo indefinidamente suas fronteiras para quem quiser vir nesse mundo em crise. Porém, se comemoramos a conquista do 6ª posição dos PIBs nacionais e se nos candidatamos a co mandar a força internacional de ocupação do Haiti, o mínimo que devemos oferecer aos cidadãos daquele país é um comportamento mais humanitário e de solidariedade no quesito imigração. Inclusive porque o impacto quantitativo da presença haitiana em nossas terras será diminuta, em termos proporcionais.

Na verdade, o que esse fato revela é a inexistência de uma política efetiva e consistente do Estado brasileiro para lidar com a questão da imigração. Assim, além de equacionar a questão dos haitianos com medidas que se revelem mais adequadas do que a mera imposição de cotas, essa pode ser a oportunidade de se abrir esse debate de forma mais ampla na sociedade.

O governo estuda medida para estimular imigração de mão de obra qualificada, a chamada “drenagem de cérebros” do exterior, inclusive aproveitando a crise e as altas taxas de desemprego nos países industrializados. Pode até revelar-se interessante para suprir conjunturalmente a carência momentânea de nosso mercado de trabalho. Mas apenas esse tipo de proposta e a imposição de cotas são evidentemente insuficientes para definir uma política nacional de imigração. Se é que pretendemos ter alguma.

NOTAS

[1] Ver http://blogdaamazonia.blog.terra.com.br/2012/01/18/policiais-do-brasil-e-peru-encurralam-haitianos-sobre-ponte-na-fronteira/
 
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10

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