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Os governos recentes e a concentração do capital
sexta-feira, 22 de julho de 2011
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Quando a gente conta, as pessoas não acreditam. Afinal não é essa a imagem do governo atual e dos anteriores no exterior. Mas o fato é que realmente desde a posse de Lula em janeiro de 2003 tem início um processo de encantamento dos recém-chegados ao poder com o mundo do capital e das finanças. Uma situação que era inimaginável até então: o namoro e a aproximação político-ideológica dos dirigentes do partido e dos sindicalistas com o universo empresarial, em especial aquele das finanças.
Talvez o elemento mais emblemático tenha sido a indicação e a permanência de Henrique Meirelles à frente do comando do Banco Central durante os 8 anos em que Lula ocupou o Palácio do Planalto. E a tabelinha sincronizada e azeitada que fazia com Palocci à frente do Ministério da Fazenda. Mas há outras formas de encarar o mesmo tipo de comportamento dos governos mais recentes com relação aos pleitos e aos interesses do grande capital. No caso, talvez valha a pena detalhar melhor os processos relativos ao estímulo à concentração de capital e à formação e ao fortalecimento de grandes oligopólios atuantes em nossa economia. Mais uma impressionante reviravolta em tudo aquilo que o PT sempre havia proposto nos tempos em que estava na oposição. Antes, era sempre a denúncia de favorecimento de grandes grupos e a exposição dos malefícios e os riscos que a concentração pode trazer para a maioria da população. Depois de 2002, a coisa mudou de figura e as propostas sofreram uma guinada considerável.
Antes de mais nada, é importante registrar que o Executivo federal em nosso País tem um poder potencial considerável para atuar nessa matéria. Há órgãos nos ministérios encarregados de acompanhar as tendências à concentração de mercados, como a Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda (SEAE/MF) e a Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (SDE/MJ). Há projetos de pesquisa feitos pelo IPEA e pelos grupos de pesquisa nas universidades. O governo indica os membros do Conselho Administrativo de Defesa da Concorrência (CADE), um órgão que regula e julga os casos de abuso de poder no mercado. O governo tem sob sua direção as importantes agências financeiras, como o BNDES ou o Banco do Brasil, para estimular ou evitar tais eventos prejudiciais aos interesses da maioria.
Mas a grande surpresa tem sido o caminho trilhado desde então. Vamos recuperar aqui somente um pouco da memória dos casos mais significativos. Mas que confirmam a mudança de orientação e o estabelecimento de uma política (às vezes formalmente, outras vezes de maneira mais informal) de estímulo à concentração do capital.
Em 2004, chega ao momento de decisão um caso que se arrastava desde 2002, em que a grande multinacional suíça Nestlé resolveu adquirir o controle de seu grande concorrente nacional no ramo alimentício, em especial chocolates e biscoitos – a Garoto. Para quem conhece minimamente a realidade desse setor, tal fusão significaria a formação de um grande grupo cartelizado com poder quase monopolístico no mercado. Ou seja, grande poder de pressão sobre os fornecedores de matéria prima e bens intermediários, bem como uma enorme capacidade de atuar isoladamente na política de preços de seus produtos junto ao consumidor final. Apesar da decisão do CADE ter estabelecido certas condições para aprovar a operação, o fato é que o processo tornou-se irreversível.
Em 2008, saímos do ramo alimentar e entramos no espinhoso setor de telecomunicações. Em mais uma daquelas situações inexplicáveis, o governo acaba sendo convencido de uma suposta necessidade de promover a fusão de dois gigantes da telefonia. E juntando num único grupo uma empresa do ramo da telefonia fixa com outro da telefonia celular. Uma aberração econômica e uma impossibilidade jurídica. Afinal, a própria Lei Geral das Telecomunicações proibia tal concentração de mercado. Algum problema? Pois então tratoremos a decisão na ANATEL e mudemos essa leizinha que nos complica a vida… Simples assim. No final das contas, foi efetivada a fusão, com a compra da Brasil Telecom pela Oi/Telemar. Surgiu o monstrengo da BrOi. E o Brasil continua a ser um dos países que apresenta as maiores tarifas de serviço telefônico e telecomunicações em geral no mundo. Concorrência no setor para melhor a qualidade dos serviços e reduzir preços? Universalização do acesso à internet a custos efetivamente baixos? Isso não passa de conversa prá boi dormir.
No ano seguinte, em 2009, o ramo do agronegócio tangenciando com o alimentício volta à cena. Trata-se da fusão dos dois gigantes de carnes e aves: Sadia e Perdigão. Não contentando-se com a condição de grandes empresas com poder oligopolístico, resolveram unir-se num quase monopólio. Mais uma vez, foram ajudadas e estimuladas pelo governo, que via com bons olhos a formação dessa enormidade empresarial, num ramo voltado também ao mercado externo. Afinal, o País já havia conquistado a liderança mundial nas exportações de aves e seus subprodutos. Com todo o apoio financeiro necessário do BNDES, o discurso era o da necessidade da criação das “multinacionais brasileiras”. O nome da nova empresa é bem sugestivo a esse respeito: Brazil Foods, com o poder de quase 50% do mercado! E a nossa conhecida prática de recorrer ao Estado para ter recursos e assegurar o risco, ao passo que a apropriação do lucro continua sendo – obviamente – privada. Assim, decisão recente do CADE de colocar algumas pré-condições para aprovar a fusão pouco influencia no cerne da concentração.
Outra iniciativa do governo foi a promoção da concentração do já concentrado grupo de frigoríficos e carnes – o JBS-Friboi. Considerado como um dos grandes do mundo, nesse mesmo 2009 ele foi incentivado a fundir-se com o grupo internacional Bertin. Mesmo enredo dos anteriores: apoio logístico e financeiro do governo para uma mega operação entre privados, que em nada favorece a concorrência no mercado das carnes. Caso típico em que os fornecedores de matéria-prima (os criadores e fazendeiros) dependem do preço do oligopólio na compra e este determina o preço de venda na ponta para o consumidor final. Nos cursos e manuais de economia, costuma-se classificar essa condição como “oligopsônio”, caso em que as possibilidades de afastamento das regras de concorrência e de abuso de poder econômico são freqüentes.
Em 2010, a operação que chamou a atenção ocorreu no ramo da construção civil e da incorporação imobiliária. Uma das maiores empresas do mundo PDG Realty comprou a gigante brasileira Agre, que já havia sido resultado de uma fusão de três grandes nacionais (Agra, Klabin Segall e Abyara). A linha de defesa da operação apoiada pelo governo era a da importância estratégica das grandes multinacionais brasileiras.
Agora estamos assistindo às marchas e contramarchas da novela da fusão do Carrefour e do Pão de Açúcar. E sempre o dedo do governo no meio da transação empresarial carregada de suspeita. No limite do desespero argumentativo, houve autoridade que chegou a falar na importância da operação, pois ela abriria mercado externo para produtos brasileiros! Como se já não bastassem serem dois gigantes da grande distribuição, o governo ainda estimula a superfusão entre ambos e tentou botar o BNDES a injetar recursos na arquitetura financeira. No final, foi necessária a ameaça do grupo francês Casino para que a fusão perdesse fôlego e o governo recuasse.
No caso das empresas de aviação, setor em que há uma tendência à concentração, o governo não se mobiliza tampouco para evitar a oligopolização. A recente aquisição da Webjet pela Gol reforça essa postura passiva, além de ter inviabilizado outra tentativa de consolidação de uma empresa operando no sistema de “baixo custo, baixa tarifa”, como foi o caso da aquisição da empresa Bra. O mercado brasileiro já demonstrou, por algumas vezes, que é possível operar empresas de aviação praticando preços mais baratos que o transporte por ônibus a longa distância. Mas para tais objetivos e o estímulo à criação de empresas aéreas regionais, é necessário que o poder regulador do Estado se faça de forma mais ativa.
Além disso, é importante lembrar a falta de coragem política de enfrentar a concentração de poder no setor da imprensa e das comunicações em sentido amplo. Não há argumentos de natureza jurídica, econômica ou democrática que justifiquem a existência desses conglomerados. Na maioria dos países há regras que evitam a horizontalização das atividades, ao contrário do que ocorre nas nossas terras. As oligarquias políticas regionais dominam a imprensa escrita, as rádios, as concessões de televisão e por aí vai. Ao manter intocável o atual estado de coisas favorecedor da concentração, os governos recentes foram perdendo sua credibilidade em um outro setor onde se esperava mudança. Com o agravante de tratar-se de uma área bastante sensível, pois estimula concentração de capital e de acesso à informação. O escândalo do todo-poderoso Murdoch está escancarado aí para quem quiser ver, mostrando o caminho a ser evitado.
Por fim, é importante registrar que a concentração em si mesma nem sempre é negativa para a sociedade. Há setores em que os recursos necessários exigem empresas de grande porte e poucas conseguem se manter na atividade. O caso da infra-estrutura é típico. E aqui, justamente, entra a ação do Estado, seja na condição de proprietário da empresa pública ou como órgão regulador das atividades do setor. A idéia é assegurar retorno social desse tipo mercado concentrado, de modo que os preços e a qualidade dos serviços oferecidos estejam compatíveis com as necessidades da população. E não adianta tentar escamotear a natureza das decisões políticas, com a já gasta desculpa retórica dos “elementos técnicos envolvidos na questão”. Há sempre, ao menos, dois lados com interesses opostos. E os governos têm adotado, de forma sistemática, os interesses das empresas envolvidas com a concentração.
Paulo Kliass, Doutor em economia pela Universidade de Paris 10 (Nanterre) especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, do governo federal.