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Pontos sobre a dívida pública
terça-feira, 7 de maio de 2013
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No mundo contemporâneo, os Estados não conseguem implementar suas políticas econômicas sem lançarem mão do recurso do endividamento público. A questão é saber bem avaliar o “como” e o “quanto” fazer nesse processo. É preciso fugir da comparação rasteira com os processos que ocorrem na economia em âmbito individual ou familiar.
A Secretaria do Tesouro Nacional (STN), subordinada ao Ministério da Fazenda (MF), divulgou recentemente seu boletim periódico, contendo as informações relativas ao comportamento da dívida pública federal. O balanço refere-se à situação do endividamento da União até o final do primeiro trimestre de 2013.
A leitura do documento nos informa que o volume total da dívida pública federal atingiu a cifra de R$ 1.940 bilhões, ou seja, R$ 1,9 trilhão. Isso significa que teria ocorrido uma elevação correspondente a R$ 85 bi no valor total da dívida ao longo dos últimos 12 meses, uma vez que o valor para março do ano passado havia sido de R$ 1.855 bi. Assim, não obstante o pagamento de mais de R$ 140 bi a título de juros da dívida pública no mesmo período, o Estado brasileiro ainda promoveu o crescimento do valor do principal da dívida da União em quase 5%.
Puxa! Quase 2 trilhões de reais! Parece um valor mastodôntico! Sim, mas e daí? Tais números e índices, tomados assim de forma isolada, informam muito pouco a respeito da realidade fiscal brasileira e, menos ainda, não chegam a oferecer elementos suficientes para uma análise de nossa capacidade de fazer frente a tal nível de endividamento. Faz-se necessário compreender melhor o conceito de dívida pública em si mesmo, verificar como ela se manifesta no caso da realidade brasileira e também estabelecer alguma referência de comparação internacional.
O endividamento público e as dívidas dos outros agentes
O primeiro ponto a salientar é a necessidade de fugirmos da comparação “rasteira” com os processos que ocorrem na economia em âmbito individual ou familiar. A tentação de “facilitar o raciocínio” por meio do recurso a esse tipo de analogia pode ofuscar o fenômeno econô mico em si. Na verdade, há um conjunto amplo de diferenças entre as pessoas ou as famílias e o Estado. No nosso caso, um aspecto essencial diz respeito à soberania do último como entidade política e econômica. Ao contrário dos indivíduos, o Estado tem o poder de emitir moeda e de constituir dívida por meio de títulos de aceitação generalizada, quando não compulsória. O setor público tem para si o monopólio de emissão de moeda nacional e o poder de coerção jurídico-institucional para torná-la obrigatória para todos os agentes operando no espaço nacional.
Quando um indivíduo não paga uma dívida financeira, ele pode sofrer as sanções previstas na legislação e sofrer as conseqüências de sua inadimplência. Estão no nosso entorno os inúmeros casos de pessoas que não conseguem mais ter conta em banco ou cartão de crédito, que tiveram seus bens penhorados pela justiça e por aí vai. No caso das empresas ocorre também o recurso ao p oder judiciário por parte dos credores e o limite é o próprio processo de liquidação ou falência para cumprir com as obrigações financeiras, tributárias ou trabalhistas. Já no caso do Estado, a situação é distinta. Exatamente por sua condição de agente catalisador da ordem econômica e social, o não cumprimento de cláusulas de seu processo de endividamento pode ser simplesmente solucionado por meio da emissão de mais títulos da dívida pública.
Vale observar, porém, que o processo de concentração e centralização do capital acabou criando mega-conglomerados empresariais privados que possuem tamanha força e poder junto ao Estado, que acabam sendo beneficiados como se fossem verdadeiros entes públicos. É o caso recente das ajudas às instituições financeiras oferecidas pelos governos mundo afora ou a nossa tupiniquim mãozinha do BNDES aos grupos econômicos em dificuldade, como o de Eike Batista. Apesar desse tipo de exceção, via de r egra, o setor público é o único a contar com sua própria natureza essencial para implementar a máxima atribuída a Delfim Netto. Na condição do todo-poderoso Ministro da Economia, às vésperas da crise do início dos anos 1980, com enorme dificuldade para honrar os compromissos da dívida externa brasileira, o economista teria afirmado que “dívida não se paga, dívida se rola”.
Financeirização da economia e dívida pública
Os mecanismos de endividamento público, por outro lado, acompanharam também o processo de sofisticação e financeirização do capitalismo ao longo das últimas décadas. Assim, os títulos da dívida pública deixaram de ser apenas papéis que deveriam ser liquidados na data de vencimento, quando o Estado iria então cumprir com o prometido e pagar o valor devido ao portador do título. Eles passaram a ganhar ampla autonomia, transformando-se em mais uma modalidade de mercadoria a ser oferecida nas gôndolas dos supermercados do circuito financeiro. Títulos do tesouro norte-americano têm sua cotação específica na negociação entre especuladores privados. Títulos da dívida pública argentina têm outra. Títulos da dívida brasileira outra ainda diferente.
Na ciranda da esfera das finanças, os títulos públicos são trocados em velocidade que nada ou muito pouco tem a ver com a finalidade original da emissão. Ali, naquele momento do lançamento, o título público cumpriu com sua razão de ser. Ou seja, permitiu ao Estado arrecadar recursos do setor privado em troca de um papel (operação, diga-se de passagem, cada vez mais virtual) que contém cláusulas de rendimento periódico (pagamento de juros anuais, por exemplo) e uma promessa de transformá-lo em moeda no final do período (às vezes com prazos superiores a 30 anos). A partir de então, passou a ser mais um instrumento de ganhos de natureza parasitári a, puramente financeiro, sem nenhum lastro no setor real da economia. Compra-se ou vende-se título de dívida de qualquer país, em especial nos chamados “mercados secundários”, apenas com base na especulação e na informação privilegiada.
Diferentes razões para o endividamento do Estado
O impacto do endividamento público sobre a economia de um país determinado depende de muitas variáveis. Um dos muitos elementos diz respeito às razões que levaram à geração da dívida considerada. Em geral, podem-se considerar dois grandes grupos de circunstâncias. De um lado, as necessidades do setor público em cobrir rombos em sua estrutura fiscal: despesas maiores que receitas e uma certa urgência em eliminar o déficit que surge nas contas do Estado. De outro lado, há situações em que o crescimento da presença da atividade estatal está a requerer maiores recursos, por exemplo, para ampliar a capacidade de investimento público. Nesses casos, por mais que as contas públicas estejam equilibradas no curto prazo, o Estado precisa levantar recursos (como se fossem empréstimos) para projetos de longo prazo. A idéia subjacente é de que o retorno sócio-econômico desse tipo de investimento consiga gerar recursos para pagar as cláusulas financeiras constantes no título emitido.
Em geral, as situações de lançamento de dívida pública associadas ao segundo caso tendem a conseguir maior aceitação junto àqueles que se dispõem a emprestar dinheiro ao setor público, na expectativa de obter algum rendimento por essa opção de aplicação financeira de seus recursos. Isso porque o financiamento de projetos de infra-estrutura pode significar alguma sinalização de que a economia do país conseguirá dar saltos qualitativos no horizonte temporal futuro. Já a busca emergencial de recursos para cobrir buracos de curto prazo pode ser reveladora de algum a dificuldade fiscal do setor público e tende a gerar algum grau de incerteza quanto à capacidade de pagamento das condições do título emitido. Em termos bem concretos, a taxa de juros presente nos papéis lançados pelo tesouro no primeiro caso tendem a ser mais elevadas do que no segundo caso.
Além disso, a transformação do processo de endividamento em algum tipo de índice ou elemento quantitativo pode gerar muita controvérsia. No caso brasileiro, por exemplo, a situação é bastante complexa. Por se tratar de uma república federativa bastante peculiar, contamos com instâncias de poder público no plano federal, estadual e municipal. Com isso, segue-se que tanto a União como os estados e os municípios podem lançar títulos de suas respectivas dívidas públicas. Além disso, as empresas estatais desses três níveis da Administração Pública também podem gerar obrigações financeiras – operação que se caracterizaria, em última instância, como dívida pública.
Por outro lado, o Estado possui um mosaico de bens de natureza distinta e que poderiam ser levados em conta, também, caso se pretenda avaliar a capacidade de cumprir o pagamento do estoque da dívida. Os exemplos são tão díspares como o potencial petrolífero a ser extraído do pré-sal (o subsolo é patrimônio da União), as instalações de empresas como a Telebrás (que tinha um estoque de rede de fibra ótica ainda não utilizado), o valor patrimonial de uma hidroelétrica como Itaipu ou mesmo o potencial econômico agregado da Amazônia brasileira. Mas esse conceito mais sofisticado de contabilização pública ainda não é muito bem aceito nas instituições.
Variadas formas de medir o endividamento
Assim surgem outros indicadores mais tradicionais como: i) o endividamento público interno da União (total da dívida interna da União em relação ao PIB); ii) o endividamento público externo da União (total da dívida externa da União em relação ao PIB); iii) o endividamento público do Brasil (total das dívidas de União, estados, municípios, INSS, empresas estatais e similares em relação ao PIB); iv) a dívida líquida do setor púbico – DLSP (faz um balanço entre haveres e deveres no interior do próprio setor público); entre tantos outros indicadores. Cada índice desses envolve sua metodologia específica e oferece um número que reflete uma preocupação diferente dos demais.
No caso brasileiro atual, a dívida total (interna e externa) da União representa 45% do PIB. Já a dívida global do setor público das 3 esferas de governo representa 60% do PIB. Finalmente, a DLSP representa algo em torno de 36% do PIB. Como se pode perceber os números soam variados e pretendem atender aos diferentes paladares dos interessados. A polêmica mais recente envolvendo um artigo de economia que servia de base para aplicação de medidas ortodoxas de austeridade fiscal em países pelo mundo afora serve de exemplo. Ali, os autores manipularam dados e erraram na fórmula para forçar um resultado “científico” de que países onde a dívida pública representasse mais de 90% do PIB estariam fadados à estagnação. Ainda que nossos 60% estejam longe disso, o fato é que o Japão cresceu mais de 2% ao longo do ano passado e tem um índice equivalente a 220%. Ou então, o caso de diversos países do espaço europeu que ultrapassaram esse limite e nem por isso deixarão de crescer nos próximos anos.
Não há dúvida de que o conceito de dívida pública é importante para se avaliar o desempenho atual e futuro de um país, em termos econômicos. Porém, é necessário incorporar outros elementos de análise para que sejam apresen tadas conclusões definitivas a respeito de rumos a tomar ou então para que sejam aceitos cenários com tanta certeza, como pretendem os economistas de planilha. O fato é que, no mundo contemporâneo, os Estados não conseguem implementar suas políticas econômicas sem lançarem mão do recurso do endividamento público. A questão é saber bem avaliar o “como” e o “quanto” fazer nesse processo.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10