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A respeito do imposto sobre carros importados
segunda-feira, 26 de setembro de 2011
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O temor da reação ao aumento das alíquotas do IPI para automóveis e caminhões levou a um comportamento cheio de “justificativas”, quase “desculpas”, como se fosse uma decisão equivocada, mas necessária. Nada disso! A decisão é correta e faz parte do menu de política econômica de boa parte dos países do mundo.
Paulo Kliass
Na semana passada, o governo anunciou o aumento das alíquotas do Imposto de Produtos Industrializados (IPI) incidente sobre automóveis e caminhões, que os meios de comunicação têm chamado de “importados”. Na verdade, a decisão de aumentar em 30 pontos percentuais a alíquota do IPI é um pouco mais complexa. Até então, as faixas variavam de 7% a 25% e agora passaram a um mínimo de 37% e um máximo de 55%. No entanto, o critério adotado diz respeito ao conceito de “índice de nacionalização”. Ou seja, para não sofrer a elevação tributária, a produção do veículo deve contar com pelo menos 65% das peças ou do conteúdo produzidos internamente no Brasil.
Isso se deve ao amplamente conhecido processo de globalização, onde as grandes corporações multinacionais adotam estratégias de localização mundial de suas plantas industriais, sempre com o objetivo de reduzir custos e aumentar margens de lucro. Pneus, eu encomendo ou produzo em tal país. Componentes eletrônicos em outro. A parte de chapas de aço vem de um terceiro. E assim por diante. A conclusão é que o veículo comprado no Brasil pode até não ser totalmente importado, mas montado aqui com 90% das peças importadas. Nesse caso, por exemplo, o carro passaria a obedecer às novas regras [1].
Na verdade, a equipe da Presidenta Dilma perdeu a oportunidade da divulgação da medida para estabelecer outros ganhos adicionais importantes. Ficou um anúncio seco, rápido, com o receio das críticas dos setores ligados às importadoras e também de parte da chamada “opinião pública”, composta por setores da classe média que garantem o consumo desses veículos. Em primeiro lugar, era o momento de politizar o debate e adotar uma postura mais ofensiva na defesa da medida. O temor da reação levou a um comportamento cheio de “justificativas”, quase “desculpas”, como se fosse uma decisão equivocada, mas necessária. Nada disso! A decisão é correta e faz parte do menu de política econômica de boa parte dos países do mundo. Voltaremos ao assunto aqui embaixo.
O segundo ponto perdido é, com certeza, mais sério. O governo deveria ter exigido dos setores que foram diretamente beneficiados pela medida um conjunto de pré-requisitos a serem adotados pelas empresas que terão sua margem de mercado aumentada, sem que elas não tenham tido nenhum esforço relativo a qualidade ou preço de seus produtos. Vão ganhar apenas com a decisão do governo. Ora, caberia colocar o compromisso público de medidas, tais como; i) não elevação de preços pelo período da medida, até fim de 2012; ii) não demissão de trabalhadores durante o período de vigência das novas regras; iii) metas de elevação da nacionalização dos componentes e aplicação de recursos na área de pesquisa e desenvolvimento (P&D), entre outros aspectos. Mas, não! O que se fez foi apenas uma generosa oferta – um regalo de Natal fora de época – sem nenhuma exigência de contrapartida das empresas. E aí fica aberta a retaguarda para as críticas de que a motivação teria sido apenas o lobby das montadoras aqui instaladas.
A utilização de impostos como instrumento de política de comércio exterior é muito antiga na disputa do mercado internacional. Apesar de todo o discurso em prol do liberalismo econômico e pelo fim das barreiras existentes à livre circulação de mercadorias, desde os tempos dos clássicos como Adam Smith e David Ricardo, o fato é que os Estados nacionais sempre interpuseram algum tipo de medida de caráter protecionista para atender aos interesses de setores com poder político na suas estruturas sociais internas. Tributos sobre bens importados, subsídios para que os produtos nacionais cheguem a preços mais baixos ao consumidor ou simplesmente imposição de quotas à importação de determinados bens.
Essas são práticas da União Européia, dos Estados Unidos, do Japão e por aí vai. Liberalismo é bom de sugerir para o quintal dos outros! Nada contra essa contradição, faz parte da política. E aí fica a Organização Mundial do Comércio (OMC) encarregada de julgar os casos considerados “abusivos” e de punir os países cujos longos processos os considerem como culpados.
Mas, em geral, as decisões de caráter protecionista eram do tipo “para favorecer os setores nacionais” contra os “estrangeiros”. Hoje em dia – e é bem o caso da recente decisão do governo brasileiro – não se trata mais dessa forma de polarização mais, digamos, rudimentar.
Afinal grupos como Ford, General Motors, Volkswagen, Mercedes Benz, Fiat, Peugeot, Citröen, Renault, Honda, Mitsubishi – para ficar em apenas alguns dos que serão beneficiados pelo Decreto n° 7567, de 15 de setembro de 2011 – não são exatamente o que se poderia caracterizar como representantes do interesse nacional brasileiro! Portanto, trata-se de medida de política econômica com o intuito de preservar emprego e renda aqui dentro, ainda que as empresas obedeçam a núcleos decisórios cujas lógicas e interesses encontram-se bem distantes do nosso solo tupiniquim.
Mas nem por isso a decisão está equivocada. Inclusive porque – além das antigas e conhecidas marcas norte-americanas, européias, japonesas e coreanas – agora despontam por aqui também os produtos “made in China”. Com preços lá embaixo, comprometendo seriamente a produção interna e ameaçando a nossa economia com o processo de desindustrialização. E isso sem contar a poderosa Tata indiana, que mantém um projeto de carro urbano mais barato do planeta, o Nano, a preços inferiores a 3.000 dólares a unidade. Ora, se nosso mercado é assim tão promissor, que venham se instalar e produzir aqui dentro.
Alguns analistas levantam a crítica da “ruptura de contrato”, pois a medida vai contra as condições existentes quando da entrada das importadoras em operação. Ora, mas essa tese levaria a uma impossibilidade absoluta de alterar quaisquer regras, a qualquer momento. Mais sérias me parecem ser as “rupturas” derivadas das conseqüências econômicas, sociais e políticas da desindustrialização. Outros apontam eventual risco de pressão inflacionária, uma vez que os importados chegariam com preços mais elevados e propiciariam às montadoras que obedeceram aos limites do conteúdo nacional eventual margem para aumento em seus preços. Nesse caso, cabe ao governo utilizar-se de seus inúmeros instrumentos de pressão para evitar esse tipo de comportamento oportunista por parte das montadoras. Afinal, todos sabemos que a indústria automobilística não é nenhum mercado da batatinha.
Já peço desculpas antecipadas a eventuais leitores que haviam pensado em comprar algum veículo constante da lista do Ministério da Fazenda. Mas o fato é que a maioria das decisões (e inclusive das não-decisões) não são neutras e afetam interesses. O Brasil não pode mais continuar permitindo de forma passiva esse tipo de concorrência, que sufoca nosso parque industrial e transfere renda para o exterior. Na verdade, a medida já veio muito tarde. E, infelizmente, não veio acompanhada de medidas de política industrial efetivas para permitir o desenvolvimento de ciência e tecnologia internas para que o Brasil possa ser auto-suficiente no setor. Ou alguém acha que Coréia, China e Índia estão hoje em condições de exportar seus veículos para cá por conta de algum milagre não explicado fora da decisão dos governantes daqueles países em consolidar um parque industrial competitivo?
Nosso setor automotivo começou a ser instalado lá nos tempos de Juscelino Kubitschek, mais de 5 décadas atrás, e até hoje o País ainda não construiu um projeto de uma indústria brasileira no setor. Talvez seja tarde para começar agora, pois muita gente considera tratar-se de um setor mais para o passado do que para o futuro. Mas que sirva de exemplo dos males que o Brasil sofre pela inexistência de uma vontade política afirmativa e de uma política industrial audaciosa, que nos permita despontar em várias áreas, como o fizemos com a Embraer, a Petrobrás e outros setores estratégicos e portadores de futuro.
No caso da automobilística, bem como de outros setores de grande porte, a nossa postura tende a ser de subserviência, como se eles fizessem um favor ao vir se instalar por aqui. Aproveitam-se de toda sorte de incentivos fiscais e estimulam até briga entre as unidades da federação, para saber quem vai oferecer mais benefícios para o grupo se instalar em tal ou qual Estado. Um verdadeiro leilão contra o Brasil. Já veremos como o governo vai se comportar com as negociações que estão em curso (com transparência quase zero, diga-se de passagem!) para um setor igualmente estratégico: computadores, condutores eletrônicos, chips e demais áreas da informática. Trata-se da vinda da maior empresa do mundo do ramo, a poderosa chinesa Foxconn. É fundamental que se rompa com a postura historicamente subserviente que sempre nos marcou. Aliás, nada mais do que a postura adotada pela China quanto às exigências impostas às empresas estrangeiras que lá desejam se instalar. Um pouquinho de espírito de soberania e defesa do interesse nacional não faz mal a ninguém!
[1] Vale aqui a observação de que os veículos produzidos no âmbito do Mercosul estão fora de tais medidas, pois o espírito é justamente da consolidação de um mercado comum, sem barreiras alfandegárias entre os países membros. E o importante é que sejam negociadas condições para evitar o chamado “efeito corredor”, em que a importação via Argentina permita a burla às novas alíquotas. O mesmo vale para os veículos importados do México.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10