Combate ao trabalho escravo fica sob ameaça por falta de estrutura
Pasta do Trabalho sustenta que ações serão preservadas
Planejadas em sigilo durante os últimos meses, pelo menos quatro grandes operações de combate ao trabalho escravo correm o risco de não serem deflagradas por falta de estrutura de fiscalização. Articuladas pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho, as ações esbarram em questões operacionais básicas, como a falta de passagens aéreas para as equipes que fazem o trabalho de campo. As dificuldades para combater a exploração ilegal de trabalhadores ocorre em meio a graves denúncias sobre o comando do ministério no governo Temer, que afetam toda a estrutura de funcionamento da pasta. No começo do último mês, o ministro Helton , o ministro Helton Yomura foi afastado, sob suspeita de corrupção.
O GLOBO teve acesso a documentos que revelam como até a compra direta de passagens aéreas tornou-se um desafio. O procedimento de aquisição de bilhetes era possível até 29 de junho, quando a regra que permitia à pasta adquirir passagens diretamente de companhias aéreas perdeu a validade no Congresso. Sem o canal direto de compra, restou ao ministério usar a cota de bilhetes do sistema tradicional, emitidos por meio de agências de viagem. Essa cota, porém, está praticamente esgotada.
Dessa forma, o chamado grupo móvel, unidade especializada em operações complexas de combate à escravidão contemporânea, está com o cronograma atrasado. A essa altura, as passagens para o trabalho de campo em agosto já estariam compradas ou reservadas.
PRAZO ESGOTADO
Além disso, o prazo para acionar os órgãos que vão atuar em parceria com o grupo móvel em pelo menos uma das ações programadas, como o Ministério Público do Trabalho, está estourado.
O Ministério do Trabalho informou, em nota, que estão “asseguradas todas as condições para o desenvolvimento das operações do Grupo Móvel em agosto, dentro de sua programação administrativo-financeira”. Acrescentou que o deslocamento das equipes é “uma das mais absolutas prioridades”, e que “em consonância com isso, agendou para 3 de agosto a realização de um pregão eletrônico com o propósito de contratar uma nova empresa responsável pelo fornecimento de passagens aéreas”.
A pasta não esclareceu, porém, se as passagens do grupo móvel só serão emitidas após a realização do pregão previsto ou se já estão garantidas. Mas reafirmou que as equipes têm as condições asseguradas para desenvolver operações em agosto.
Internamente, o cenário é outro. Chefes de departamentos têm relatado apreensão com a restrição para emitir passagens aéreas. Há dez dias, eles foram avisados que só havia cerca de 40 bilhetes para serem usados até o fim de setembro.
Desde 1995, o grupo móvel libertou mais de 52 mil trabalhadores, segundo dados oficiais. No ano passado, as inspeções chegaram a ser paralisadas por falta de dinheiro, mas logo foram retomadas.
AÇÃO DO GOVERNO JÁ PÔS EM XEQUE POLÍTICA DE PROTEÇÃO
Não é a primeira vez que o governo Temer coloca em xeque a política brasileira de combate ao trabalho escravo reconhecida mundialmente. Em outubro de 2017, o Ministério do Trabalho baixou uma portaria que, na prática, dificultava a realização de fiscalizações, impondo uma série de atos burocráticos, e modificava conceitos essenciais para a responsabilização dos patrões flagrados.
“Trabalho forçado”, “jornada exaustiva” e “condições análogas à de escravidão” ganharam outras definições, distanciando-se da natureza da escravidão contemporânea. Era preciso, por exemplo, haver restrição de liberdade para ficar configurada a situação de escravidão. A medida, com repercussão negativa internacionalmente, foi suspensa por decisão do Supremo Tribunal Federal.
A portaria foi editada na véspera da votação da denúncia contra o presidente Michel Temer na Câmara, por obstrução de Justiça e formação de quadrilha. A oposição viu a medida como uma moeda de troca com a bancada ruralista, crítica ferrenha das fiscalizações. Temer saiu vitorioso, com a maioria dos deputados votando pelo trancamento da investigação. No fim do ano passado, o governo editou uma nova portaria desfazendo a norma anterior.
ESCASSEZ DE VERBA CONTRASTA COM GASTOS DE MINISTRO
Enquanto os servidores que combatem o trabalho escravo penam para deflagrar operações, não faltaram recursos no Ministério do Trabalho para garantir viagens do ex-ministro Helton Yomura, investigado por corrupção e afastado do cargo por ordem do Supremo Tribunal Federal. Dos 186 dias deste ano em que esteve no comando da pasta, Yomura passou 109 dias fora de Brasília. As viagens custaram R$ 110 mil aos cofres públicos, segundo o portal da Transparência.
Somente em uma viagem para Genebra, o gasto foi de R$ 28.023,18. Yomura ficou quase 15 dias na Europa participando de eventos como “Almoço do Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil” e “jantar em honra dos ministros do G-20, proporcionando uma oportunidade de troca informal de pontos de vista relativos ao emprego”.
O destino mais recorrente do ex-ministro, no entanto, foi o Rio de Janeiro, onde mora. Em geral, as viagens para o estado ocorriam na quinta ou na sexta-feira, com volta na segunda ou na terça-feira. Sempre com alguma agenda no fim e no começo da semana.
Numa quinta-feira de março, Yomura foi para o Rio “proferir palestra na feira Super Rio Expofood”, segundo os registros oficiais. No sábado, participou de “inauguração da nova Gerência Regional do Trabalhador em Petrópolis”, voltando no domingo a Brasília. O tour custou R$ 7.607,52 .
Numa passagem por São Paulo, em junho, quando foram gastos R$ 2.878,93, Yomura tinha apenas uma agenda: “Sessão solene de outorga do Colar de Honra ao Mérito Legislativo do estado de São Paulo ao deputado Campos de Machado”.
A assessoria de Helton Yomura afirmou, em nota, que o ex-ministro “seguiu rigorosamente a legislação sobre viagens” e destacou que os deslocamentos “foram para cumprir agenda oficial e se justificam em razão da capilaridade do Ministério do Trabalho”. Muitas das viagens foram para “explicar e dirimir dúvidas” sobre a reforma trabalhista.
Em Genebra, Yomura participou da Conferência Anual da Organização Internacional do Trabalho, “cuja duração é de duas semanas, tendo participado de apenas uma semana”. A missão foi defender “a modernização trabalhista que poderia resultar em sanção para o Brasil caso comprovada violação às convenções internacionais ratificadas”.