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Economia Social e Solidária e o Movimento Sindical no Brasil

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Artigos

Economia Social e Solidária e o Movimento Sindical no Brasil

Por: Ruth Coelho Monteiro

O princípio da economia solidária é a apropriação coletiva dos meios de produção, a gestão democrática das decisões por seus membros, e a deliberação coletiva sobre os rumos da produção, sobre a utilização dos excedentes (sobras) e, também, sobre a responsabilidade coletiva quanto aos eventuais prejuízos da organização econômica.

No Brasil, a economia solidária ressurgiu na década de 1980 como uma resposta dos(as) trabalhadores(as) à crise social provocada pela estagnação econômica e pela reorganização do processo de acumulação capitalista. No entanto, ganha visibilidade na década seguinte quando se insere no debate sobre as potencialidades transformadoras inerentes à luta popular e da classe trabalhadora. A resposta dos(as) trabalhadores(as) e comunidades empobrecidas passa a ter caráter emancipatório.

Foi uma agenda política sustentada em práticas econômicas concretas: trabalhadores desempregados ocuparam fábricas fechadas e ativaram sua produção por meio da sua organização coletiva e de autogestão; agricultores familiares e assentados da reforma agrária organizaram cooperativas de crédito, de produção e de serviços, em contraposição à subordinação à agroindústria capitalista; comunidades urbanas e rurais organizaram coletivamente grupos de produção, compras coletivas e fundos solidários e rotativos de crédito; populações de catadores de lixo (nos lixões e nas cidades) organizaram sua atividade de coleta e reciclagem por meio de associações e cooperativas. Estes são alguns exemplos da prática da economia solidária no país.

Entende-se aqui que a economia solidária configura uma proposta socializante e democrática dos movimentos sociais para a “questão social”, assentada no acirramento do conflito e das contradições existentes entre as conquistas democráticas (universalidade constitucional de direitos em 1988) e o crescente desemprego e exclusão social decorrentes da opção neoliberal para superar a crise de acumulação capitalista. Essa “questão social” caracteriza a conjuntura nacional na década de 1990. Após a derrota do projeto democrático popular em 1989, com perspectivas de reformas estruturais profundas, assistimos ao descenso da luta de massas, à desmobilização e à fragmentação do movimento sindical e dos movimentos sociais.

No âmbito da ação do Estado, sua reorganização ao fazer frente às exigências da crise da acumulação do capital significou a implementação de políticas explícitas de crescente transferência dos recursos públicos para o sistema financeiro e consequente redução da responsabilidade pública para a questão social. Então, aquilo que se chamou de “Estado mínimo”, nada mais foi do que um Estado máximo para o capital, na sua capacidade de transferência de recursos públicos da sociedade para um determinado setor da economia, mais estrangeiro do que propriamente nacional e mínimo para atender aos direitos do povo e prover a nação de um projeto de desenvolvimento. Portanto, uma conjuntura permeada por desemprego, precarização, exclusão, desigualdade, descenso da luta social e política neoliberal compõe o contexto da expansão da econômica solidária, das experiências econômicas concretas, de empreendimentos econômicos solidários, e da crescente opção dos movimentos sociais, sindical, universidades e organizações populares por uma nova forma de luta social a partir da organização econômica das pessoas.

Não há como negar que a economia solidária é uma estratégia própria da sociedade civil. Contudo, com a chegada ao poder local das “forças democrático-populares”, passou a ser incorporada também na agenda dos governos. Foi na segunda metade na década passada que foram implantados os primeiros programas e ações governamentais de apoio à economia solidária. Tais iniciativas ganharam maior relevância e visibilidade quando implantadas em municípios metropolitanos como Porto Alegre, São Paulo, Recife e Belém. Assim, a economia solidária emerge igualmente a partir da ação governamental e não apenas da sociedade civil. Já existem análises e avaliações publicadas sobre estas experiências. A própria Secretaria Nacional de Economia Solidária, junto com a Rede de Gestores de Políticas Públicas de Economia Solidária, promoveram estudos e debates sobre tais iniciativas (SENAES/MTE, 2008).

É preciso considerar também que a economia solidária entrou na agenda das políticas governamentais como que “pela porta dos fundos”. Refiro-me aqui às iniciativas de cooperação econômica e autogestão surgidas no âmbito dos programas de geração de trabalho e renda. Apesar de adotarem a perspectiva da empregabilidade (responsabilização do trabalhador pelo emprego ou desemprego), volumes substantivos de recursos destes programas foram apropriados pelo movimento social e sindical para a promoção de ações de qualificação profissional e apoio a projetos de geração de renda. Programas de geração de trabalho e renda também estavam presentes nas políticas assistenciais e de desenvolvimento local. Muitos empreendimentos econômicos solidários surgiram, por exemplo, no âmbito do Programa de Desenvolvimento Local e Integrado e Sustentável (DLIS) e do Plano Nacional de Qualificação Profissional (Planfor). Os dados do Sistema Nacional de Informações em Economia Solidária (SIES) também demonstram a importância do apoio governamental (vários órgãos e instâncias) para o surgimento da economia solidária no país ao longo da década de 1990.

Mas foi a partir da primeira situação que a economia solidária foi se consolidando enquanto uma política específica, integrando uma agenda presente, de maneira crescente, nos planos e programas de governos. Este processo ocorreu a partir de um amplo “experimentalismo” de políticas de apoio à economia solidária. Tal diversidade pode ser entendida em função da especificidade das questões locais, das compreensões políticas sobre o potencial da economia solidária no enfrentamento das questões sociais, da priorização política, administrativa e orçamentária das ações implementadas, assim como em função dos diversos entendimentos sobre o significado da própria economia solidária.

ECONOMIA SOLIDARIA E POLÍTICAS PÚBLICAS

Em alguns governos estaduais, ações mais aprofundadas do ponto de vista da ação em si e do consenso interno com relação à economia solidária, ao tempo em que, em outros, verificam-se ações mais pontuais e residuais. Do ponto de vista das políticas públicas, a inclusão da economia solidária nas ações governamentais explicitava os limites e contradições do “Estado mínimo para o social”, pois a economia solidária exigia uma posição cada vez mais ativa dos governos: compor equipes qualificadas de gestores, planejar ações de longo prazo, viabilizar capacidade de alocação de recursos, integrar o Estado à economia real das comunidades. De alguma maneira pode-se afirmar que as exigências da economia solidária contribuíram para a crítica das políticas neoliberais e para a defesa da participação mais ativa do Estado no enfrentamento das questões sociais.

Esse experimentalismo foi tomando corpo e maior organicidade com a disposição dos gestores para a troca de informações e experiências. Neste sentido, a constituição da Rede de Gestores destas políticas permitiu um salto de qualidade para o debate e as práticas das agora denominadas “políticas públicas de economia solidária”. Isto porque a iniciativa dos gestores de dialogarem entre si, trocarem experiências, saber o que estava sendo implementado nos municípios e estados e realizar avaliações críticas foi consolidando uma compreensão de que havia unidade na diversidade. A Rede de Gestores foi fundamental para construir um processo de identidade do que se entende hoje por política pública de economia solidária.

A realização de processos mais sistemáticos de oficinas e atividades formativas de gestores – ampliadas com o apoio da Secretaria Nacional de Economia Solidária – permitiram a sistematização de documentos e declarações sobre os princípios, as diretrizes, as características, os instrumentos e a institucionalidade das políticas públicas de economia solidária. Tal acúmulo de práticas e reflexões foi fundamental para a elaboração do texto-base da Primeira Conferência Nacional de Economia Solidária em 2006 (I Conaes). Com as deliberações da conferência, as políticas públicas de economia solidária passaram, de forma definitiva, a compor a centralidade da estratégia política do movimento de economia solidária no país. A própria conferência e, em especial, a criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária – e ainda, posteriormente, a criação do Conselho Nacional de Economia Solidária – configuram uma nova institucionalidade no Brasil para as políticas de economia solidária.

No entanto, tais avanços políticos e institucionais ainda não alteraram uma das principais características das políticas de economia solidária: “são políticas de governo”, isto é, sua existência depende dos partidos, coalizões ou grupos políticos que assumem a direção do Poder Executivo. Por isso, a economia solidária ainda não foi incorporada na agenda dos direitos (da cidadania) e dos deveres (públicos). Esta é a questão da institucionalização das políticas públicas de economia solidária. Como incorporar a economia solidária na agenda do Estado brasileiro? Como traduzir as demandas e necessidades da economia solidária em direitos dos(as) trabalhadores(as) e em dever do Estado? Como garantir que as ações governamentais permaneçam para além dos processos eleitorais? Portanto, a questão da institucionalização das políticas públicas de economia solidária refere-se a dois aspectos: i) sua transição de política de governo para política de Estado, entendendo que a economia solidária representa uma possibilidade de que as políticas governamentais se tornem permanentes, ao serem apropriadas pela estrutura de Estado, e não apenas pela equipe de governo; e ii) sua inserção no campo dos direitos, da constituição de sujeitos de direitos e das obrigações públicas (deveres do Estado para assegurar este conjunto de direitos).

Para aprofundar um pouco mais a problemática da institucionalização das políticas de economia solidária, é também necessário constatar seu caráter de transversalidade. Em sua trajetória, estas políticas foram forjando sua identidade no interior de outras políticas, das políticas de trabalho e renda, de assistência social, de desenvolvimento rural, de desenvolvimento econômico etc. A economia solidária se apresentava como parte de outras políticas – políticas setoriais ou temáticas que a precederam na agenda dos governos e do Estado, e que a englobaram, e não como uma política específica. Muitas destas políticas possuem alto grau de institucionalização e algumas delas são organizadas em sistemas públicos, a exemplo do Sistema Público de Emprego, Trabalho e Renda (SEPTR), do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) ou do recente Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN). Portanto, ao se tratar da questão da institucionalização, é fundamental incluir esta relação entre economia solidária e outras políticas. Isto coloca novos desafios: como abordar a economia solidária já incluída em outras institucionalidades políticas existentes? Como identificar as especificidades que permitem demonstrar as particularidades dos direitos inerentes à economia solidária? Como dar institucionalidade própria à economia solidária sem gerar sobreposição das ações?

O fato é que a economia solidária vinha ganhando um status próprio. E, talvez, a criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária seja o marco histórico nesta direção, assim como a implantação do Conselho Nacional de Economia Solidária e alguns correlatos em algumas Unidades da Federação. A economia solidária vai obtendo maior visibilidade no interior das estruturas dos governos com a criação das coordenações de economia solidária, departamentos de economia solidária, e, em alguns casos, a exemplo da União, de secretarias de economia solidária. Pelo menos no âmbito da atuação do Poder Executivo, a economia solidária vai se afirmando a partir de estruturas específicas de gestão.

Na implementação dessas políticas figura outro tema com destaque: a questão da participação e do controle social que, após a Constituição de 1988, se consolida na realização das conferências nacionais, nos conselhos paritários e em outros mecanismos. Os sujeitos da economia solidária vão disputar a política nos conselhos já existentes ou construir um espaço próprio de participação e controle social da política? Quando da criação do Conselho Nacional de Economia Solidária e realização da I Conferência Nacional de Economia Solidária já se delineava uma posição clara sobre a questão. Também aqui o desafio é aprofundar a institucionalização da participação e do controle social, mas de forma a assegurar os necessários mecanismos de articulação e a integração da economia solidária com as outras políticas públicas, reconhecendo suas especificidades, suas trajetórias e seus sujeitos.

Para concluir, ainda permanece um desafio. Discutiu-se até aqui sobre as políticas no âmbito de governo e como elas se constituem enquanto políticas mais permanentes. A proposição que parece mais simples é a ideia de que precisamos transformar nossos programas e nossas ações em legislação, em lei. Leis municipais, estaduais e nacionais. Assim, estabelecidas a compreensão, a política, as ações com seus objetivos, bem como seu público, seus instrumentos e seus mecanismos de controle em lei, ter-se-ia assegurada, do ponto de vista do Estado, a política a ser operada pelos governantes enquanto uma exigência pública. Não seria mais uma opção de governo: seria uma exigência pública para a implementação de políticas. Embora isso se evidencie fundamental, há que se ter clareza de ainda ser insuficiente para se institucionalizar a política. Por quê? Porque a institucionalização da política não é legalizar a política simplesmente, é criar aquelas condições da chamada hegemonia da economia solidária, ou capacidade que a economia solidária tem de certa direção cultural e moral sobre a sociedade e sobre os governos para a implementação de sua política. A lei por si só é importante, mas não resolve o problema da institucionalização. Porque a institucionalidade não se resume à legalização: corresponde também à criação das condições políticas para que qualquer governo fique constrangido do ponto de vista social e moral a implementar um conjunto de ações de apoio à economia solidária. Esta é uma questão fundamental, cujo debate deve ser aprofundado.

Foram aqui registrados avanços importantes do ponto de vista da direção da institucionalização da política pública de economia solidária no país. Há também definições já tomadas e que necessitam ser implementadas. As resoluções da I Conferência Nacional de Economia Solidária propõem a criação um Sistema Nacional de Economia Solidária, o fortalecimento do Conselho Nacional de Economia Solidária, a implantação de conselhos nos estados e municípios, e aponta para a urgência de uma legislação específica para instituir formalmente os sujeitos, os direitos, e os instrumentos para assegurar os direitos da economia solidária. Isto a exemplo de alguns municípios e estados que já aprovaram em seus legislativos leis específicas para a economia solidária.

Ao colocar na ordem do dia a questão da legislação – com a apresentação pelo conselho da proposta de Lei Nacional da Economia Solidária –, a economia solidária amplia as exigências para institucionalização de sua política. Além do poder executivo e da sociedade civil, há necessidade de participação dos parlamentos. A criação de frentes parlamentares é um indicativo deste avanço. A par da frente parlamentar existente no Congresso Nacional, há ainda outras frentes em assembleias legislativas estaduais. Mas mais do que apoiadores, a economia solidária vai se deparar com outros interesses de classe representados – de maneira dominante – nos parlamentos. Neste caso, a institucionalização requer a construção de consensos mais amplos.

Mas a ideia de tornar “legal” a política de economia solidária por si só também pode ser ingênua. Em si, não é a lei (texto formal) que cria direitos e deveres. A lei somente se tornará ação viva caso a economia solidária apresente força política para exigir a permanência das iniciativas em curso. E esta força depende, por sua vez, da força ético-política originária das alianças e compromissos entre a economia solidária e demais sujeitos e lutas emancipatórias. Nesta força reside a perspectiva de que a criação de novas institucionalidades signifique a afirmação de novos valores e de novas bases para o processo de desenvolvimento.

Para o movimento sindical esse é um campo novo de atuação, na medida em que foge da tradicional relação trabalhador-empregador, mas que tem um grande impacto nas questões de proteção social, como a oferecida pela Seguridade Social, que engloba a Previdência Social (sistema público de aposentadoria e pensões), a Assistência Social (que protege as famílias de baixa renda) e o Sistema Único de Saúde (que é universal, público e gratuito). Por esse motivo, as centrais sindicais tem procurado organizar dentro de sua estrutura esse setor, como é o caso da Força Sindical que criou em seu último congresso a Secretaria de Agricultura Familiar, para trabalhar com esse setor e outras ainda tratam o tema dentro do setor informal.

A grande preocupação do movimento sindical é que esses trabalhadores tenham também assegurados os seus direitos trabalhistas, que fazem parte da legislação e das convenções coletivas de trabalho, e que não sejam utilizados pelas empresas para precarizar as relações de trabalho, como é o caso das falsas cooperativas e do uso da figura do microempreendedor individual como uma forma de escamotear as relações de emprego formal. Por isso a necessidade de organização desses trabalhadores em órgãos de classe, para defender e ampliar seus direitos sociais e trabalhistas.

Ruth Coelho Monteiro
Secretária Nacional de Cidadania e Direitos Humanos da Central Força Sindical – Brasil
Email: secddhh@fsindical.org.br
Telefone: (+5511) 3348-9033

 

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